Na fictícia cidade litorânea de Cinturón, a empresa privada de fornecimento de energia elétrica amargava uma situação financeira cronicamente deficitária, não detectada pela atuação do regulador estatal, e com isso negligenciava os investimentos necessários, bem como as ações de manutenção, usando os recursos arrecadados apenas em despesas correntes e para engordar a remuneração de seus acionistas.
Como previsto, a ausência de uma atuação estrutural cobrou seu preço um dia, e o balneário de Cinturón, destino de turistas com seus bares e parques aquáticos, padeceu um longo período de três anos, no qual ocorreram, de forma recorrente, faltas de energia, por vezes com duração superior a 48 horas, afetando as famílias e os negócios.
As redes sociais dos moradores se encheram de reclamações, vociferando ofensas. Muitos gritavam das sacadas bravatas e xingavam das janelas dos automóveis políticos já falecidos. A insatisfação era explícita e geral, mas parava por aí, sem passeatas ou protestos em frente à sede da concessionária ou dos órgãos públicos relacionados ao tema.
Desapareceram da imprensa os parlamentares da região e os governantes começaram nas redes sociais um espetáculo de acusações mútuas. Ações de atores estatais fiscalizadores conflitavam entre si, enquanto a imprensa se agitava, em um burburinho de promessas de realizações e de sanções, com propostas de multas milionárias. Um salseiro que se acalmava novamente a cada ciclo de apagão, com o retorno do fornecimento de energia elétrica.
Essa história fictícia, mas que pode se dar em qualquer país, ilustra as dificuldades da construção da accountability nas relações regulatórias, em um cenário hiperconectado, com múltiplos atores disputando protagonismo momentâneo e as deficiências na capacidade da população de se mobilizar diante dos problemas, e até de diagnosticar quais as causas e as providências necessárias, em um ambiente de desinformação.
Vive-se um momento no qual problemas crônicos geram uma sobrecarga de informações quando eclodem suas consequências, gerando confusão e um verdadeiro apagão de accountability, sem conseguir definir quem precisa fazer o quê e quando, e ainda, o que fazer para pressionar quem deve fazer o que é necessário.
Após o clímax de desespero e confusão, de catarses públicas e soluções radicais, de apurações múltiplas e de busca de culpados, o assunto sai de cena por conta de um novo problema de grandes proporções percebido, e as questões estruturantes que contribuíram para o problema inicial voltam para fora do foco, até o momento em que seus efeitos surgirão de novo.
A percepção de problemas nesse contexto gera debates rasos, polarizados, que são permeados por muita desinformação e poucas soluções factíveis, diluindo a responsabilidade dos atores públicos e privados que deveriam ter adotado medidas no momento certo, resultando em prejuízos para a comunidade e onerando a solução dos mais afetados pela via da judicialização, naturalmente menos célere.
No universo da regulação estatal de serviços oferecidos à população, a accountability, palavra ainda não traduzida e que remete a que cada ator se sinta responsável e possa ser responsabilizado, é assunto de grande relevância, que permite enxergar não somente o efeito na superfície, como no apagão fictício, mas o conjunto de medidas corretivas e preventivas que não foram adotadas.
Uma discussão que envolve órgãos de controle, reguladores e movimentos sociais, no entendimento de que a autonomia é essencial para o fortalecimento da regulação diante das influências políticas, mas que a mesma influência política é que garante a permeabilidade da atuação regulatória frente as demandas da população.
A accountabilty, como princípio democrático, precisa dialogar com esse mundo novo, para resgatar a sua capacidade de evitar problemas pelo risco da responsabilização, e de garantir a remediação pela apuração e reparação. No meio de tanta espuma, essa capacidade pode se reduzir a bravatas de desesperança e ódio, afetando o próprio tecido da democracia liberal.
Em tudo que envolve o interesse coletivo, há o Estado. Seja na regulação do mercado, seja na prestação direta de serviços pelo Estado. E se há Estado, devem existir mecanismos efetivos da população cobrar os direitos derivados da atuação estatal, para que o sistema retorne ao equilíbrio diante das situações cotidianas, e isso se faz com accountability, que passa por muito mais do que uma discussão de transparência.
Para materializar essa accountability existem atores específicos para tal, com poder legal e estrutura para cobrar providências, os chamados órgãos de controle, e pode-se falar também de uma dimensão popular, na mobilização da população pela via eleitoral, ou por outros mecanismos menos formais, nas linhas do defendido pelo escritor argentino Guillermo O’Donnell (1998).
Cabe também se falar de uma accountability concorrencial, quando o fomento de um mercado mais competitivo tem como efeito a qualidade do serviço prestado. Mecanismos para que na prestação de serviços à população a coisa aconteça como tem de acontecer.
Infelizmente, essa discussão de accountability da regulação não está conseguindo acompanhar o ritmo ciclópico desse mundo novo, no qual se constroem outras dinâmicas de percepção da realidade pela população, incluindo-se aí os problemas e as suas soluções. E diante dos apagões reais de serviços públicos, não se consegue reagir na promoção do reequilíbrio, da homeostase, perdida na fricção de fatos localizados e de promessas de soluções radicais.
A crise da democracia liberal vivida no século 21 é causa e também consequência de uma crise de accountability, em que a responsividade escapa pelos dedos, mesmo diante das consequências destruidoras manifestas. Viu-se isso a nível mundial na pandemia da Covid-19 e nos desastres naturais derivados das questões climáticas emergentes, em um ciclo que abala a confiança nos governos e realimenta a fragilização da democracia (Castells, 2018).
O cidadão comum do município de Cinturón teve seu lazer frustrado, perdeu alimentos na geladeira, e viu as receitas de seu negócio caírem vertiginosamente. Ele precisa saber o que está acontecendo, para quem reclamar e que providências estão sendo tomadas para o retorno à normalidade. E a despeito de toda cultura de transparência e das múltiplas formas de se comunicar, ele encontra confusão e debates inúteis frente ao seu problema concreto, e termina o dia desolado, amargando seus prejuízos.
A ideia de accountability é um escudo protetor em relação aos grandes riscos globais (Braga, Caldeira, 2022), e isso dialoga muito com as questões regulatórias, como um campo de discussão fronteiriço, em especial nesse mundo onde a comunicação, uma das grandes ferramentas da accountability, se vê modificada por um cenário de múltiplos produtores de conteúdo.
Esse debate invisibilizado talvez seja um dos mais relevantes dos dias atuais. Em especial pelo senso comum pensar que a accountability em suas diversas manifestações anda bem, pelos seus estrondosos efeitos na superfície, mas não se debate a entrada dessa na raiz dos problemas que retornam de forma cíclica, pela força dessas mesmas raízes, que não se apagam com podas superficiais.
BRAGA, M.V.A.; CALDEIRA, D. M. Accountability anti meteoro. Blog Diálogos Públicos (UOL). 2022. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/dialogos-publicos/2022/01/02/accountability-anti-meteoro.htm >
CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
O’DONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e Novas Poliarquias. Lua Nova, São Paulo nº 44, 1998.