Passaram-se 2.127 dias ou quase seis anos. Até a data de elaboração deste texto, esse foi o prazo consumido pelo processo normativo de revisão da regulamentação de compartilhamento de postes entre o setor de telecomunicações e o setor de energia elétrica.[1]
Acredite ou não o leitor, a saga ainda não acabou. Pelo contrário, acaba de sofrer um reboot, voltando para a estaca zero.
No âmbito da Aneel, essa verdadeira odisseia ganhou um novo capítulo na última terça-feira (23), com a decisão da Diretoria Colegiada de, após sucessivas prorrogações, reiniciar a instrução da matéria. A proposta de extinção do processo, apresentada em voto-vista pelo diretor-geral da Aneel, se fundou em uma aparente discordância da proposta de regulamentação em relação à obrigação de as distribuidoras cederem a terceiros o direito de exploração comercial dos postes, introduzida pelo artigo 16 do Decreto 12.068, de 20 de junho de 2024.
Não se discute, no presente artigo, o acerto ou desacerto da obrigação veiculada pelo decreto. De todo modo, a previsão parte da ideia de que a outorga do direito de exploração dos postes a um terceiro (as chamadas posteiras) criaria os incentivos necessários para viabilizar a regularização da ocupação dos pontos de fixação utilizados pelas prestadoras de telecomunicações e para mitigar os inúmeros litígios entre as empresas dos dois setores.
Na visão do diretor-geral, acompanhada pelos diretores da Aneel, Fernando Mosna e Ricardo Tili, formando maioria no colegiado, o dever de as distribuidoras cederem o espaço em infraestrutura previsto no decreto não implicaria a obrigação de cessão da atividade de exploração comercial da infraestrutura.
Segundo essa visão, “o ‘espaço em infraestrutura’, como efetivamente escrito no texto do Decreto, pode ser interpretado como o ato de ceder o espaço do poste, com ônus, para ocupação dos cabos das empresas de telecomunicação”. De acordo com essa interpretação, o decreto estaria apenas reforçando o dever legal das distribuidoras de compartilhamento dos postes com as prestadoras de telecomunicações.
Ou seja, não haveria, necessariamente, obrigação de delegação, pelas distribuidoras, da exploração dos postes às posteiras, compreendidas como agentes econômicos especializados na exploração comercial de espaços em infraestrutura de distribuição, incluindo os pontos de fixação destinados ao setor de telecomunicações.
Na prática, a decisão representa discordância significativa da Aneel em relação aos rumos que vêm sendo conferidos ao tema do compartilhamento de postes no nível infralegal. A decisão surpreendeu a todos que esperavam um desfecho para a trama e, agora, projetam uma enxurrada de judicializações.
A jornada da regulação do compartilhamento de postes se iniciou em 1997, com a previsão, no artigo 73 da Lei Geral de Telecomunicações, do direito das prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo de acessarem a infraestrutura detida por prestadoras de outros serviços de interesse público (como é o caso dos postes).
A matéria foi objeto de sucessivas resoluções conjuntas entre Anatel e Aneel que buscavam, em especial, resolver os numerosos conflitos entre os setores acerca do valor devido pelo compartilhamento. Em 2014, partindo do diagnóstico de manutenção da litigiosidade, as agências editaram resolução conjunta que estabeleceu preço de referência para os conflitos acerca do valor do compartilhamento.[2]
Em iniciativa louvável, a resolução previu a necessidade de sua própria revisão no prazo de cinco anos, processo que começou a ser realizado a partir de uma tomada de subsídios da Anatel já em 2018, antes mesmo do término do prazo.
Desde então, não apenas continuaram (e até mesmo se intensificaram) os debates acerca dos valores do compartilhamento, como também se formou um relevante passivo associado à ocupação irregular de postes. Buscando resolver, de uma vez por todas, esses problemas, um novo processo normativo se iniciou no âmbito das duas agências.
O Relatório de Avaliação de Impacto Regulatório, produzido conjuntamente por Anatel e Aneel, data de 12 de março de 2020. De lá para cá, em 24 de outubro de 2023, o Conselho Diretor da Anatel aprovou uma proposta de alteração regulamentar que contemplava a cessão obrigatória da exploração comercial dos postes pelas distribuidoras para as posteiras, ainda que em condições diversas daquelas estabelecidas no decreto (v.g., condicionada à identificação, via chamamento público, de interesse na exploração da atividade).
Dado o caráter conjunto da regulamentação, a edição da norma ainda dependia de aprovação da Aneel. À época, a Anatel chegou a discutir a realização de reunião colegiada conjunta entre o seu Conselho Diretor e a Diretoria Colegiada da Aneel[3], mas, após tratativas junto à Aneel, a proposta não foi à frente.
Para além dos dilemas e conflitos de interesse intrínsecos ao compartilhamento de postes, esse brevíssimo histórico é sintomático da dificuldade de articulação entre reguladores na definição de uma solução para temas transversais.
Apesar dos avanços, a legislação atual tem se mostrado insuficiente para viabilizar, na prática, a desejável coordenação entre reguladores. A Lei 13.848, de 25 de junho de 2019 (denominada Lei das Agências Reguladoras) conta com dispositivo específico disciplinando a articulação entre agências reguladoras. A Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (Lei do Processo Administrativo Federal), por sua vez, foi alterada pela Lei 14.210, de 30 de setembro de 2021, para disciplinar a chamada decisão coordenada.
A título de exemplo, nota-se que a Lei 13.848/2019, ao prever que os atos normativos conjuntos devem ser aprovados pelos órgãos deliberativos de cada agência reguladora envolvida segundo “procedimento idêntico ao de aprovação de ato normativo isolado”, pode suscitar interpretações que dificultam a operacionalização de instrumentos de coordenação.
Não divergimos da premissa de que as agências envolvidas devam obediência às normas aplicáveis aos seus respectivos processos normativos e possuam competências distintas. No entanto, a diretriz legal de condução do processo de forma idêntica ao de ato normativo isolado pode reforçar a falta de diálogo, contraditória com a própria noção de regulamentação conjunta.
Diante das hesitações práticas em se adotar uma coordenação regulatória efetiva, se afigura importante disciplinar, explicitamente, de que modo essa articulação deve ser operacionalizada. Isso deve incluir, por exemplo, a previsão de etapas processuais conjuntas, em especial no que concerne à instrução processual, à produção de análises técnicas e à realização de reuniões deliberativas.
Embora, em nossa visão, os permissivos legais atualmente vigentes já contenham instrumentos para que processos normativos possam ser conduzidos de forma conjunta, parece necessário prever mecanismos mais eficazes para a integração das etapas processuais.
A mera previsão desses mecanismos não, necessariamente, evitaria a morosidade que pode advir da necessidade de composição de posições entre reguladores de diferentes setores, mas ao menos garantiria a segurança jurídica necessária para que os reguladores tivessem, à sua disposição, ferramentas claras e previamente definidas para interagirem entre si.
O desenvolvimento e o amadurecimento desses instrumentos assume ainda maior importância em um contexto no qual temas de ampla transversalidade, como a inteligência artificial, se colocam na ordem do dia da regulação econômica.
No caso concreto dos postes, apesar de um elogiável esforço inicial de condução de AIR conjunta, houve um notório distanciamento entre as agências, na fase mais crítica do processo normativo: a deliberação. Isso resultou na aprovação unilateral de uma proposta pela Anatel. A partir do momento em que a Anatel se antecipou e aprovou uma proposta, restou à Aneel anuir à minuta aprovada, sugerir alterações, o que fatalmente implicaria o retorno da matéria à Anatel, ou – em alternativa inesperada – reiniciar o processo normativo. Nem mesmo a existência de decreto presidencial foi suficiente para garantir segurança jurídica e pôr fim às incessantes idas e vindas em torno do tema. Evidenciou-se, assim, um impasse institucional.
A se medir pela reação da Anatel – que classificou a decisão da Aneel como um retrocesso “distante do que era objeto de negociação e consenso entre ambas as agências” –, o capítulo da falta de diálogo parece ter assumido contornos ainda mais preocupantes, de embate institucional entre os reguladores.
No atual contexto, a falta de articulação adequada entre os diferentes atores públicos pode ser considerada causa ou consequência dos problemas relacionados ao compartilhamento de postes? Difícil precisar. Enquanto os reguladores se digladiam em busca de uma solução, o problema da ocupação irregular aumenta, os litígios sobre valores de uso dos postes se multiplicam e a resposta fica ainda mais distante. A odisseia continua, sem previsão de desfecho, ampliando a insegurança e o custo Brasil.
[1] Para fins de clareza, identificamos, como ato inaugural do processo normativo, a Tomada de Subsídios veiculada pela Consulta Pública 28/2018, aberta pela Anatel em 26 de setembro de 2018.
[2] Já no momento da definição de um preço de referência era possível identificar uma divergência entre Anatel e Aneel, apesar de convergirem em relação ao valor a ser definido. Nesse sentido, veja-se: “Com relação ao preço, apesar de ocorrer uma convergência em torno do valor de R$ 3,19 e de sua forma de cálculo, os Relatores apresentaram visões distintas sobre sua utilização, enquanto o representante da Aneel reforçou a utilização do mesmo para a resolução dos conflitos, reforçando que a livre negociação ainda seria a melhor solução, o representante da Anatel externou a preocupação com eventuais subsídios cruzados do setor de telecomunicações para o de distribuição de energia elétrica, reforçando que tal valor deveria ser orientado a custos. (…) Nesse ponto, cabe uma reflexão, apesar das duas agências convergirem para o preço de R$ 3,19, visões totalmente distintas levaram ao mesmo resultado, enquanto para Aneel a visão seria de buscar um valor que representa a média de uma série de contratos “negociados livremente”, sem arbitrar um valor, a Anatel entendia que seria melhor a definição de um preço que espelhasse somente os custos envolvidos”. (ARAUJO, Antonio Carlos Marques. Uma proposta de Análise de Resultado Regulatório – ARR da Resolução Conjunta Aneel/Anatel 004/2014. ENAP. Brasília. 2019)
[3] O conselheiro Alexandre Freire propôs ao presidente da Anatel a realização de reunião colegiada conjunta entre o Conselho Diretor da Anatel e a Diretoria Colegiada da Aneel para deliberar sobre a alteração do regulamento de compartilhamento de postes. Cf. Ofício 68/2023/AF-Anatel, de 26.09.2023, Processo 53500.014686/2018-89. Em resposta, o presidente da Anatel, Carlos Baigorri, ratificou a proposta do Conselheiro e indicou que havia iniciado tratativas com a Aneel para a adoção da decisão administrativa coordenada. Cf. Ofício 83/2023/PR-Anatel, de 05.10.2023, Processo 53500.014686/2018-89. A iniciativa, contudo, acabou não tendo êxito, e a proposta foi aprovada pelo Conselho Diretor da Anatel, permanecendo sob análise da Diretoria Colegiada da Aneel.