Anuncia-se que uma das medidas da presidência brasileira do G20 será propor a taxação dos “super-ricos”, assim considerados os indivíduos detentores de patrimônios constituídos por bens e direitos com valores de mais de US$ 1 bilhão.
A proposta consta de relatório[1] encomendado ao economista francês Gabriel Zucman, que considera que esses indivíduos poderiam suportar uma maior carga tributária sobre a renda do que aquela que seus estudos apontam como a que efetivamente suportam.
O Relatório Zucman estima que a tributação média anual dos bilionários é de 0,3% de sua riqueza total. Pretende-se, com modalidades adicionais de tributação, elevar sua carga fiscal para que passem a pagar anualmente, a título de impostos sobre a renda e patrimônio, o equivalente a 2% de sua riqueza total, o que geraria, segundo estimativas, US$ 200 bilhões a 250 bilhões anuais.
Os novos tributos atingiriam 2.756 bilionários já identificados pelos estudos que, em conjunto, acredita-se, detém US$ 13 trilhões e ainda não pagam, como pessoas físicas, impostos de renda nos patamares considerados ideais por Zucman.
A proposta é análoga e pretende coordenar suas ações com o chamado Pilar 2 da OCDE, que introduz um patamar mínimo de 15% de tributação efetiva global para os lucros das empresas multinacionais com receita consolidada de € 750 milhões.
O Relatório Zucman sugere a criação, pelos países interessados, de três impostos para atingir seus propósitos de arrecadação.
Em primeiro lugar, sugere-se um imposto de renda presumido (presumptive income tax), em que se estabeleceria uma presunção segundo a qual o bilionário teria ganho anualmente certa percentagem de seu patrimônio (p. ex. 6%) como rendimento tributável. A alíquota do imposto de renda pessoa física seria aplicada sobre esse valor e o resultado comparado com aquele obtido pela aplicação da mesma alíquota sobre o rendimento efetivamente percebido. O imposto devido seria aquele que fosse maior.
Essa modalidade de tributação presuntiva enfrenta um obstáculo intransponível no direito tributário brasileiro, que é o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN)[2], que proíbe a tributação pelo imposto de renda de acréscimos patrimoniais fictícios.
Ora, o tributo proposto pelo Relatório Zucman, na parte que incide sobre uma parcela de renda ficta, ou seja, sobre aqueles valores que excedem a renda realmente auferida pelo contribuinte, será um tributo de natureza distinta do imposto de renda, pois incidente não sobre um acréscimo ao patrimônio previamente existente (que é a renda), mas sobre esse próprio patrimônio previamente existente.
Em segundo lugar, Zucman propõe a criação de um imposto sobre o patrimônio dos super-ricos, com uma alíquota de 2%, que gravasse todos os bens dele integrantes, avaliados a valores de mercado.
Nesse caso, no Brasil, já há autorização constitucional expressa para criação de um imposto sobre grandes fortunas por lei complementar (art. 153, VII).
Em terceiro lugar, Zucman sugere a instituição de tributo semelhante ao “billionaire minimum income tax” proposto pela administração Joe Biden, que alcançaria os ganhos de capital ainda não realizados, abrangidos em uma noção ampla de renda (broad notion of income).
Esse tributo também não seria admissível no direito brasileiro, não por gravar um acréscimo patrimonial fictício, mas por tributar um acréscimo patrimonial não realizado e, por conseguinte, indisponível para o contribuinte. Com efeito, há, inegavelmente, um ganho potencial para o bilionário, mas esse ganho ainda não se realizou e poderá jamais se realizar.
O caso de Eike Batista é um exemplo muito conhecido de nós brasileiros de um bilionário cujo patrimônio virou pó e que bem demonstra como pode ser iníqua a tributação de ganhos não realizados, mesmo para indivíduos muito ricos.
A flutuação dos valores das ações da OGX Petróleo, que rapidamente se tornou um dos investimentos mais populares na bolsa de valores, com 51 mil minoritários pessoas físicas, chamada de “mini Petrobras”, bem demonstra o que afirmamos[3].
Antes do IPO (entre 2006 e 25 junho de 2008), a OGX registrou uma alta de 20,6% no preço da ação, passando de R$ 11,31 para R$ 13,64. Mas, nos quatro meses seguintes (25 de junho de 2008 a 6 de novembro de 2008), a desvalorização chegou a 81,4%, de R$ 13,64 para R$ 2,54 – já após o IPO e em um cenário de efeitos da crise financeira internacional.
A situação se reverteu nos dois anos seguintes (6 de novembro de 2008 até 4 de novembro de 2010). Posteriormente, em meio a estimativas animadoras, a OGX acumulou valorização de 813,1%, atingindo o pico de R$ 23,27 por ação e com um valor de mercado de R$ 75 bilhões à época.
Mas este ápice não se sustentou. O movimento de sobe e desce nos papéis continuou até fevereiro de 2012 e, de lá até 31 de outubro de 2013, a situação se reverteu de forma insustentável, até o pedido de recuperação judicial da empresa, com uma derrubada de 99,3%, chegando ao fundo do poço, no valor de R$ 0,13.
Imagine-se aplicar o imposto de Zucman sobre os ganhos não realizados da gangorra de preços da OGX, variando de R$ 13,64 a R$ 2,54, com a vertiginosa subida ao pico de R$ 23,27 até a abrupta queda para o irrisório valor de R$ 0,13?
Evidente que a proposta peca ao não fazer distinções entre diferentes graus de liquidez e critérios de avaliação de ativos, pois mesmo entre os muito ricos há oscilações patrimoniais que tornam os idealizados 2% de Zucman uma medida muito maior para uns do que para outros.
Os maiores desafios da proposta estão, na verdade, em como estabelecer limites totais de tributação e repartir as competências tributárias entre os países até atingir o somatório de seu número mágico, eis que, em regra, os países tributam a renda global de acordo com o critério da residência e essa residência se fixa em função do número de dias (mais de 183 dias) que o indivíduo reside com intenção de permanência naquele Estado. Ora, como irão se coordenar as competências entre Estados participantes e não participantes e como irão se realizar as cobranças dos tributos? Ainda não há respostas concretas.
Acresce que há países, como os Estados Unidos, que adotam a nacionalidade como critério para definir a condição de contribuinte, o que faz com que seja absolutamente irrelevante a residência para excluir sua condição de contribuinte norte-americano, o que poderá conduzir a uma cumulação de exigências, quando é certo que número expressivo de bilionários é norte-americano.
O relatório propõe introdução de (i) impostos de saída (exit taxes) e/ou (ii) regras que mantenham a obrigação de pagamento de tributos no país de domicílio anterior, proporcionalmente ao período em que foi residente fiscal, ambas medidas que tornariam desvantajosa a mudança de domicílio fiscal com objetivo de redução de carga tributária.
Mas essa situação já ocorre hoje mesmo entre os países ricos. Veja-se o caso do Reino Unido que, ao anunciar o fim do resident non-domiciled, que durante anos beneficiou vários estrangeiros investidores da City londrina, está vendo seus residentes ultra ricos se mudarem para a Itália que tem um regime fiscal bastante atrativo, com um pagamento de um flat fee anual de € 100 mil, a forfait, sobre os ganhos e rendimentos obtidos em outras jurisdições.
Diz-se que essa fuga em massa para a Itália está levando o Reino Unido a repensar sua decisão e remodelar o regime, eis que, a saída dos “super-ricos” importará na perda de inúmeros negócios diretos e indiretos que eram por eles proporcionados.
Por fim, o relatório não discute a dificuldade de atingir os bilionários dos países não democráticos, com regimes fechados, pois o conhecimento da condição financeira individual pressupõe um ambiente democrático, onde os governos sejam realmente transparentes. Será que os bilionários de China, Rússia, Arábia Saudita, Irã, Venezuela, Coreia do Norte e Angola, para citar apenas alguns países onde certamente há contribuintes do tributo de Zucman, mas não há transparência, irão pagar o tributo proposto pela presidência brasileira do G20?
A única certeza é que há ainda mais perguntas que respostas.
[1] “A blueprint for a coordinated minimum effective taxation standard for ultra-high-net-worth individuals”. Commissioned by the Brazilian G20 presidency, June 25, 2024.
[2] Na expressa dicção da lei complementar que define o conceito de renda tributável: “o imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza, tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos e II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior
[3] https://www.infomoney.com.br/mercados/relembre-a-trajetoria-da-ogx-da-fundacao-a-recuperacao-judicial/