Na reforma tributária, uns não podem ser ‘mais iguais’ que outros

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Na célebre e (infelizmente) sempre atual fábula de George Orwell, A Revolução dos Bichos, prestes a completar 80 anos, ficou conhecida a frase segundo a qual “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Na regulamentação da reforma tributária (EC 132/2023), especialmente na questão da lei complementar que dispõe sobre normas comuns ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), é preciso que o legislador federal-nacional redobre os cuidados para não abusar da discricionariedade legislativa e cair nas armadilhas ironizadas na eternizada frase do romance orwelliano.

Primeiro, “é preciso dar um passo atrás para depois dar dois passos adiante” (com trocadilho, por favor). Vamos, assim, relembrar alguns aspectos fundamentais da Reforma.

Como se sabe, a EC 132/23 previu a progressiva substituição dos tributos atualmente incidentes sobre o consumo (ICMS, ISS, Pis/Cofins e parcialmente o IPI) por uma dupla de tributos com legislação, base de cálculo, sujeitos passivos e hipóteses de incidência idênticos (art. 149-B da CF): o IBS (art. 156-A) e a CBS (art. 195, V).

O primeiro é um imposto compartilhado entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, com alíquota resultante da soma da alíquota estadual com sua congênere municipal[1]. Por outro lado, a CBS tem natureza jurídica de contribuição, de competência da União, com alíquota definida em lei ordinária federal. Assim, no médio e no longo prazos, a alíquota da tributação sobre o consumo no Brasil resultará da fusão das alíquotas estadual e municipal do IBS com a alíquota federal da CBS.

De toda forma, tanto o IBS (art. 156-A), quanto a CBS (art. 195, V) foram instituídos em normas dotadas de eficácia limitada, as quais precisam ser reguladas por meio de lei complementar da União (em relação ao regramento comum de ambos os tributos: art. 149-B) e em lei ordinária de cada ente federativo, exclusivamente em relação à alíquota aplicável (art. 156-A, § 1º, V).

Nesse contexto, o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional o PLP 68/2024, o qual visa a instituir o regramento comum (art. 149-B) aplicável tanto ao IBS (art. 156-A) quanto à CBS (art. 195, V). Nada menos que 499 artigos, diversos anexos… como não poderia deixar de ser, uma legislação detalhada, mas que ainda precisará ser muito aperfeiçoada. Afinal, “o diabo mora nos detalhes”…

E é justamente nos detalhes que mora uma das inúmeras polêmicas que rondam o PLP 68, de 2024: a definição das categorias profissionais que merecem tratamento diferenciado, por meio da redução de alíquota em 30% ou em 60%.

Ocorre que o art. 9º da EC 132, de 2023 (sim, nós ainda adotamos a péssima prática de criar “artigos autônomos” nas Emendas Constitucionais… Chora, Legística…) dispôs o seguinte:

“Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.

1º A lei complementar definirá as operações beneficiadas com redução de 60% das alíquotas dos tributos de que trata o caput entre as relativas aos seguintes bens e serviços:

I – serviços de educação;

II – serviços de saúde;

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12. A lei complementar estabelecerá as operações beneficiadas com redução de 30% das alíquotas dos tributos de que trata o caput relativas à prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, desde que sejam submetidas a fiscalização por conselho profissional.”

Surgem, aqui, alguns problemas de ordem bastante prática – e que podem atingir o bolso de diversas categorias profissionais.

Primeiro, é preciso definir se há uma discricionariedade legislativa em definir quais as categorias de profissionais liberais que fazem jus à redução de alíquota em 30% (art. 9º, § 12). Pela redação do dispositivo, ainda mais se lido à luz da cláusula pétrea da isonomia em matéria tributária (art. 5º, caput, c/c art. 150, II), pode-se chegar à conclusão de que o legislador deve estabelecer a redução de alíquota em 30% para a “prestação de serviços de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística”, com a única condição de que “sejam submetidas a fiscalização por conselho profissional”. Assim, o critério de diferenciação seria a regulamentação ou não da profissão, com a fiscalização por conselho profissional.

É que, à luz do art. 5º, XIII, da CF, o legislador pode escolher quais profissões regulamentar, e em relação a quais delas exigir a criação de conselho profissional. Mesmo essa discricionariedade, porém, é mitigada, pois o STF não aceita, por exemplo, a restrição ao exercício de profissão que não ofereça risco à coletividade[2]. Assim, se o legislador escolheu regulamentar uma profissão, submetendo-a à fiscalização de conselho, deve também conceder-lhe um tratamento beneficiado em relação à alíquota de IBS/CBS, nos termos do art. 9º, § 12, da EC nº 132, de 2023.

Ainda que assim não se entenda, é preciso que haja algum mínimo fator de discrímen racional na seleção das profissões beneficiadas com a alíquota diferenciada. No texto atual do PLP, o art. 116 simplesmente elenca um rol de profissões tão díspares quanto advogados, biólogos, museólogos e técnicos agrícolas. Na exposição de motivos/justificação, nada há que indique qual foi o fator para a escolha dessas profissões específicas, e mais ainda o porquê da exclusão de algumas categorias que contam com conselhos profissionais. Por que museólogos e biblioteconomistas devem ter alíquota diferenciada, mas os representantes comerciais, que também têm conselho próprio, não? É necessária uma explicação bastante plausível para incluir no rol apenas algumas das profissões que contam com conselhos profissionais próprios…

Afinal, conforme sustenta Ingo Wolfgang Sarlet, com lastro nas lições de Alexy, “se não houver razão suficiente que permita um tratamento desigual, o tratamento igual é obrigatório”[3]. Ou, como fala Heleno Torres, tratando especificamente do art. 150, II:

“A declaração de desigualdade exige, portanto, critérios de comparabilidade efetivos para admitir alguma espécie de separação entre os sujeitos, quanto aos regimes tributários aplicáveis. É preciso haver algum critério, mui objetivamente definido”.[4]

A situação fica ainda pior em relação aos profissionais de saúde, que, de acordo com o art. 9º, § 1º, II, merecem alíquota reduzida em patamar de 60%. Foram incluídas nessa faixa diversas categorias (art. 119, c/c Anexo III), como médicos, biomédicos, farmacêuticos, psicólogos, nutricionistas…, mas os profissionais de educação física, não: esses ficaram na faixa de alíquota reduzida em 30% (art. 116, X). Dado que diversas políticas públicas de saúde incluem o profissional de educação física como essencial aos serviços de promoção e atenção à saúde, fica-se à procura de um fator legítimo de discrímen[5] que justifique a inclusão dessa categoria na faixa de redução de alíquota em 30%, e não na de 60%, como os (demais) profissionais de saúde…

Na verdade, a questão gira em torno dos limites da discricionariedade legislativa e da liberdade de conformação do legislador. Claramente, a matéria da escolha da base de contribuintes, da alíquota incidente sobre cada fato gerador e mesmo da própria delimitação da hipótese de incidência da norma são aspectos que, ordinariamente, estão incluídos na liberdade de conformação.

Porém, assim como no Direito Penal há limites inclusive derivados da razoabilidade legislativa, assim também se verifica na matéria tributária. Não se pode dar a um crime uma pena completamente desproporcional em relação a outro tipo que tutela o mesmo bem jurídico; da mesma forma, não se pode tributar de forma diferente contribuintes que se encontram em situações fáticas equiparadas, até mesmo em respeito à cláusula pétrea da igualdade em matéria tributária.

Ou, como já decidiu o STF em matéria de interpretação da cláusula do art. 150, II: “A isonomia tributária (CF, art. 150, II) torna inválidas as distinções entre contribuintes ‘em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida’, máxime nas hipóteses nas quais, sem qualquer base axiológica no postulado da razoabilidade, engendra-se tratamento discriminatório em benefício da categoria dos oficiais de justiça estaduais”[6].

Em outras palavras: assim como, na lição clássica de Hely Lopes Meirelles, discricionariedade administrativa não se confunde com arbitrariedade, da mesma maneira a liberdade de conformação do legislador não pode se convolar em verdadeiro sorteio legislativo, em que algumas categorias são premiadas, e outras, não – ainda mais quando o mandamento de inserção em faixas diferenciadas de alíquotas deriva de mandamento constitucional expresso.

Afinal, conforme a lição de Francisco Campos, “por mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações”[7]. Mais recentemente, porém no mesmo sentido, Canotilho reconhece que a liberdade de conformação do legislador encontra limites – positivos e negativos – nos princípios fundantes da República[8], dentre os quais se inclui, logicamente, a igualdade.

Claro que, na precisa advertência de Celso Antônio Bandeira de Mello, a questão da igualdade passa também por critério valorativo, axiológico (seria um procedimento quase-lógico, assim como defende Maria Helena Diniz em relação à analogia)[9]. Afinal, é preciso aquilatar quem são os iguais, quem são os desiguais, e qual é a medida das desigualdades, para que se faça jus à máxima aristotélica sobre o tema.

Porém, reitere-se: a existência de uma margem de discricionariedade não justifica que algumas profissões sejam selecionadas aleatoriamente para gozar de alíquotas reduzidas, sem que haja sequer uma apresentação de justificativa para essa diferença de tratamento. Afinal, nas palavras de Ana Paula de Barcellos, “receber justificativas relativamente aos atos que nos afetam é um dos conteúdos essenciais do respeito a que cada indivíduo faz jus em decorrência de sua dignidade”[10].

Caso contrário, a igualdade tributária dará origem a um verdadeiro bingo constitucional.

[1] AGUIAR, Danilo Augusto Barboza de et al. O Novo Sistema Tributário Nacional – modelo constitucional de tributação pós-Reforma Tributária. Salvador: JusPodivm, 2024, pp. 177 e seguintes.

[2] Por todos, cf. STF, Pleno, Recurso Extraordinário nº 795.467/SP, da relatoria do ministro Teori Zavascki.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 587.

[4] TORRES, Heleno Taveira. Comentários ao art. 150, II. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Almedina/Saraiva, 2016, p. 1634.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 37.

[6] STF, Pleno, ADI 4.276, relator Ministro Luiz Fux.

[7] CAMPOS, Francisco. Direito Constitucional, vol. 2. São Paulo: Freitas Bastos, 1956, p. 30.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 177.

[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 11.

[10] BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos Fundamentais e Direito à Justificativa. Devido procedimento na elaboração normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 92.