Transformações da pandemia no mercado de delivery e das relações de consumo

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O mercado de delivery no Brasil é substancialmente relevante nas grandes cidades. Hoje, já se encontra formado um ecossistema onde empresas de diferentes segmentos formam uma cadeia pela qual o consumidor consegue ampla diversidade de produtos em questão de minutos. Pode-se considerar que os principais segmentos de atuação dentro desse ecossistema são os de delivery de comida, delivery de mercado, marketplace de delivery, kits de receita e “dark/ghost kitchens”.

Todavia, dentre esses segmentos, o de marketplace de delivery de comida é o que tem tido maior destaque. Somente o iFood captou entre 2015 e 2018 mais de US$ 500 milhões[1]. Ademais, dentro do mercado total de foodtechs no brasil, um estudo da Outcast Ventures e da Distrito, de 2022, aponta que mais de 50% dos investimentos realizados em foodtechs no Brasil foram direcionados à categoria de marketplaces de delivery[2].

Esse cenário de consideráveis investimentos em marketplaces de delivery, que já antecedia à pandemia, encontrou nesse ambiente um grande catalisador dos retornos potenciais neste tipo de negócio, em razão das medidas sanitárias adotadas pelos governos no período. Com restaurantes fechados e com circulação restrita de pessoas, o consumidor tornou-se adepto à comodidade desses serviços de entrega. Para mais, não só a demanda se fortaleceu. Com o aumento do desemprego, a oferta de entregadores também aumentou e, com os restaurantes impossibilitados de receber clientes, foi necessário que quase todos se adaptassem à oferta de delivery.

Com base no contexto da pandemia, portanto, uma nova estrutura de mercado se formou no Brasil com a expressão de maiores ofertas para o serviço de entregas, não somente de alimentos, mas também de produtos oriundos de compras online. Num cenário como esse de trabalho remoto, não somente as pessoas passaram a ter menos tempo de, em casa, preparar seus alimentos, como também o “jantar de fim de semana”, ou o simples “comer fora”, foi substituído por esse tipo de serviço de entregas, frente às proibições de circulação. De modo que a pandemia potencializou a tendência do mundo de delivery.

O novo modelo de trabalho decorrente das circunstâncias foi apelidado de “uberização”. Fenômeno associado à empregabilidade extraordinária ao regime CLT como estabelecido por entidades de serviço e comparecimento presencial. Acompanhado desse modelo, três fenômenos se sobressaem: (i) há mais liberdade para o trabalhador, (ii) os negócios são mais rentáveis e (iii) existe um barateamento para o consumidor. Exploremos como cada um desses fenômenos aumenta o consumo e a adesão ao tipo de serviço ou interface oferecidos pelo iFood.

Com a maior liberdade do trabalhador, os almoços em empresas, as marmitas, o movimento em restaurantes próximos já não mais se realizam. Portanto, com uma plataforma que oferece pratos feitos, hambúrgueres, pizzas e qualquer outro alimento desejado por um preço acessível, ficou muito mais fácil consumir digitalmente. Com negócios mais rentáveis, o investimento em alimento rápido, prático e barato passou a ser ainda mais atraente. Psicologicamente, ter acesso a alimentos deliciosos a um clique de distância até mesmo potencializa o rendimento do trabalhador. E, é claro, o barateamento para o consumidor veio em resposta à menor necessidade de lojas físicas, alojamento, manutenção, operações de empresas e custos em geral.

Ocorre que pode haver correlação entre os impactos da pandemia no comportamento das pessoas e suas preferências durante o processo de tomada de decisão no pós-pandemia em decorrência de um viés cognitivo conhecido como viés do status quo, além da descoberta de potenciais distúrbios comportamentais decorrentes do confinamento forçado.

Conforme apontado por um estudo[3] publicado, é perfeitamente possível que a saúde mental da população de forma geral tenha declinado expressivamente durante o processo de isolamento social, tornando-a mais propensa a sofrer de certos transtornos como ansiedade e depressão. Isso significaria que tanto aqueles que foram infectados pela Covid quanto aqueles que não tiveram contato direto com a doença podem ter sido afetados psicologicamente pela ação do vírus na sociedade como todo e, em decorrência, tudo isso impactar o mercado do lado da demanda.

No campo das neurociências, há ainda quem argumente que os transtornos citados podem ser atribuídos, entre outros fatores, à insuficiência de certos neurotransmissores no cérebro, como serotonina e dopamina[4]; em paralelo, encontra-se quem defenda também que atividades relacionadas ao consumo têm como potencial efeito o aumento desses neurotransmissores no cérebro, resultando em sensações agradáveis e de prazer[5].

Por mais que seja impossível afirmar que a causa do aumento do mercado de delivery no Brasil seja o declínio da saúde mental de sua população no pós-pandemia ou fruto de um viés cognitivo de status quo, torna-se cabível para pesquisas interdisciplinares os seguintes questionamentos: em que grau o aumento da incidência de transtornos psicológicos ou apenas hábitos provenientes da pandemia influenciaram no comportamento dos consumidores, inclusive causando o crescimento de empresas de delivery e diminuição de restaurantes físicos? E, para o mundo jurídico, quais os impactos disso tudo para a regulação do mercado?

Tradicionalmente, a pesquisa jurídica dogmática ignoraria esses fenômenos factuais e sobretudo interdisciplinares. Mas é em situações como essa de mudanças comportamentais em que se observa a crescente importância das neurociências dentro do campo de atuação do Direito, que não se atém à possibilidade de se determinar uma possível e grave insuficiência do poder regulatório do Estado sobre temas difíceis como os trazidos à reflexão, mas que também pode oferecer diferentes caminhos de intervenção, eventualmente menos invasivos e mais resolutivos e pragmáticos. De modo que as neurociências oferecem promissoras perspectivas para a pesquisa jurídica e sobre a regulação.

[1] OUTCAST VENTURES; DISTRITO. Foodtech 2022. Disponível em: https://7735036.fs1.hubspotusercontent-na1.net/hubfs/7735036/data-research-foodtech-2021-V17-FM.pdf?utm_campaign=%5BD%26C%5D%20FoodTech%20Report%202022&utm_medium=email&_hsenc=p2ANqtz-_tAUhon2jZwubjb_AbeIhroDpYP6G-u26gyZ7XZPidRaKi0C4JnLjdYCrPAlzxCbaYsvTaVz1AeRJGSftoUHhO8oAhlIqK-bzcmmm0EyLRWnRVDzM&_hsmi=209947501&utm_content=209947501&utm_source=hs_automation. Acesso em: 10 jun. 2024.P.88.

[2] Idem. P.87.

[3]https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&opi=89978449&url=https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/35972&ved=2ahUKEwie2bOvs5-GAxVLH7kGHZSwAtoQFnoECBcQAQ&usg=AOvVaw28ec4jWZdRKuuBbpRDJ4KN

[4]https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/07/18/quimica-da-depressao-o-cerebro-muda-e-como-os-remedios-agem.htm

[5]https://www.megacurioso.com.br/estilo-de-vida/123113-a-ciencia-explica-por-que-comprar-e-tao-bom.htm