A tragédia climática ocorrida no Rio Grande do Sul acendeu o alerta em toda a sociedade brasileira, incluindo os mais céticos, para a temática da mudança do clima, os impactos do aquecimento global e a contribuição das atividades humanas, assunto que, por muito tempo, ficou restrito aos ambientes acadêmico e de formulação de políticas públicas. O episódio também atraiu o holofote internacional, chamando a atenção de cientistas e pesquisadores.
Neste aspecto, um estudo recente divulgado pela World Weather Attribution (WWA)[1], elaborado por pesquisadores de Brasil, Reino Unido, Suécia, Países Baixos e EUA, concluiu que as mudanças climáticas tiveram relação direta com as chuvas extremas que atingiram o Rio Grande do Sul.
De acordo com a pesquisa, o aquecimento global causado por atividades humanas decorrente da queima de combustíveis fósseis, juntamente com falhas na infraestrutura, dobrou a probabilidade de ocorrência do evento extremo, além de aumentar sua intensidade em uma escala de 6% a 9%. A avaliação ainda aponta que o fenômeno climático natural do El Niño também contribuiu para a variabilidade nas chuvas.
Os cientistas indicaram que fatores de vulnerabilidade como a pobreza e marginalização social contribuíram significativamente para que a tragédia atingisse tamanha magnitude, especialmente em assentamentos informais, aldeias indígenas e comunidades quilombolas. Infelizmente, esse dado vem a constatar o que pesquisadores já vem afirmando há um bom tempo: o agravamento das mudanças climáticas atinge de forma desproporcional e mais fortemente as comunidades mais vulneráveis, que são justamente as que menos contribuem com a emissão de gases de efeito estufa.
Instituído pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pela United Nations Environment Programme (UNEP), em 1988, o Painel Intergovernamental de Mudança do Clima consolida e divulga informações técnicas, socioeconômicas e os impactos relevantes aos riscos à humanidade decorrentes da mudança do clima. Os relatórios apresentados pelo IPCC são produzidos por um conjunto de cientistas reconhecidos na comunidade acadêmica que sintetizam as pesquisas sobre o tema e buscam orientar negociações internacionais e formuladores de políticas.
Em seus relatórios o IPCC aponta que mais da metade do aquecimento do clima desde 1951 é devido ao aumento de gases de efeito estufa e outras influências humanas atuando conjuntamente. Carlos Nobre, climatologista que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e participa dos relatórios do IPCC, em diversas oportunidades já asseverou que, à medida que a temperatura do planeta vai aumentando, eventos climáticos extremos, a exemplo do que atingiu o sul do país, também tendem a se tornar cada vez mais comuns e intensos[2].
Isso porque em 2023 tivemos o recordo de aquecimento global, com 1,5ºC a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média segue crescente. O grande desafio será justamente adaptar as cidades, retirando cerca de 3 milhões de pessoas que vivem em áreas de riscos.
Nesse contexto, recentemente foi sancionada a Lei 14.904, de 2024, que estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação às mudanças climáticas. De acordo com a lei, os planos de adaptação deverão identificar, avaliar e priorizar medidas para enfrentar desastres naturais recorrentes; minimizar perdas e danos, bem como promover a resiliência dos sistemas afetados. O texto ressalta a importância da sinergia entre a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e outras estratégias nacionais de segurança de infraestruturas críticas[3].
De acordo com o levantamento apresentado pelo observatório do Clima, o Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa, com 3% do total mundial, atrás de China (25,2%), EUA (12%), Índia (7%), União Europeia (6,6%), Rússia (4,1%) e Indonésia (4%)[4]. Apesar da nossa matriz energética ser essencialmente limpa, assumimos um papel de destaque no ranking global de emissões.
Fato é que, em um cenário de aumento do aquecimento global, as previsões para o futuro preocupam e a reforma tributária com regulamentação em discussão no Congresso Nacional possui papel central em assegurar que a presente e as futuras gerações venham a usufruir de um meio ambiente equilibrado, direito fundamento assegurado em nossa Carta Magna.
Com a promulgação da Emenda Constitucional 123, de 20 de dezembro de 2023, que alterou significativamente o Sistema Tributário Nacional, especificamente a tributação sobre o consumo, a preocupação com a crise climática e o fomento a uma economia de baixo carbono se tornou objeto de texto constitucional, representando uma inovação relevantíssima, na medida em que o princípio de defesa ao meio ambiente foi incorporado ao Sistema Tributário, que a partir de agora é expressamente convocado a atuar na proteção ambiental.
Destaca-se que a Constituição passou a prever que a concessão de incentivos regionais considerará, sempre que possível, critérios de sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono (art. 43, §4º).
Além disso, na aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, os estados e o Distrito Federal deverão priorizar projetos que prevejam ações de redução das emissões de carbono (art. 159-A, §2º).
Outra novidade é que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, o Poder Público deverá manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis (art. 225, § 1, inciso VIII). Isso porque diversas iniciativas vêm sendo implantadas e desenvolvidas no intuito de buscar a substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis, especialmente no contexto dos transportes. Dessa forma, a tributação deve ser diferenciada, privilegiando fontes limpas, a exemplo dos veículos elétricos e híbridos.
Por fim, merece destaque ainda a previsão do imposto seletivo (excise tax), novo tributo de caráter extrafiscal que irá incidir sobre produtos e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar, visando desencorajar o consumo de bens que sejam prejudiciais ao meio ambiente, coibindo externalidades negativas, expressão muito presente no contexto da economia ambiental.
Sob essa nova configuração constitucional, o direito tributário ambiental passa a ser forte aliado no enfrentamento à crise climática. A regulamentação da reforma tributária, que está em discussão no PLP 68/2024, deve ter como foco incentivar práticas de adaptação e mitigação às mudanças do clima.
A adaptação se refere a medidas que precisam ser tomadas, hoje, para se enfrentar os impactos físicos da mudança climática, tais como o aumento do nível do mar, tempestades e secas e chuvas intensas. De acordo com a Política Nacional de Mudança do Clima, a adaptação diz respeito a iniciativas e medidas para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos frente aos efeitos atuais e esperados da mudança do clima” (art. 2, I). Já a mitigação engloba os esforços para reduzir ou prevenir a emissão de gases de efeito estufa ou fortalecer sua remoção da atmosfera.
Em um contexto no qual os eventos climáticos extremos estão no topo da lista dos principais riscos que as populações enfrentarão a longo prazo, de acordo com o Relatório “Riscos Globais 2024”, do Fórum Econômico Mundial, estamos diante de uma oportunidade única para que a regulamentação da reforma tributária possa estimular a adoção de tecnologias mais limpas, contribuindo, assim, para que o Brasil possa atingir as metas climáticas firmadas no Acordo de Paris, fazendo a sua parte para que o aumento da temperatura média global fique bem abaixo dos 2 graus acima dos níveis pré-industriais.
Dessa forma, o imposto seletivo deve cumprir o seu objetivo de desincentivar atividades prejudiciais ao meio ambiente, além de nos valermos de todo o arcabouço normativo já previsto da tributação ambiental, tal como o IPTU verde, para atingirmos os compromissos internacionais assumidos.
Mais do que nunca se espera que a tributação possa atuar como instrumento de transformação socioeconômica, visando induzir investidores, empresários e tomadores de decisão a direcionarem tempo, energia e recursos financeiros para o desenvolvimento de estratégias de curto, médio e longo prazo de descarbonização da economia brasileira, auxiliando no processo de aumento da resiliência climática e de estruturação de uma robusta política de adaptação.
[1] Climate change, El Niño and infrastructure failures behind massive floods in southern Brazil, disponível em: https://www.worldweatherattribution.org/climate-change-made-the-floods-in-southern-brazil-twice-as-likely/ Acesso em 03.07.2024
[2] “Não tem mais volta”, diz Nobre sobre catástrofes climáticas. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/n%C3%A3o-tem-mais-volta-diz-nobre-sobre-cat%C3%A1strofes-clim%C3%A1ticas/a-69018745
[3] Fonte: Agência Senado.
[4] Análise das emissões de GEE e suas implicações para as metas climáticas do Brasil, Observatório do Clima, 2023.