Após 9 anos de espera, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento sobre a constitucionalidade da criminalização do consumo de drogas. Não há como dizer de outro modo, foi uma decisão histórica. Além da situação específica do réu, que aguardou o julgamento do seu recurso por tanto tempo, o caso trata de tema corrente e polêmico na sociedade, o que levou o Supremo a declará-lo como leading case. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), eram outros 6.300 casos aguardando a decisão do STF neste tema, isso para não mencionar aqueles que poderiam ser beneficiados com o estabelecimento da tese de repercussão geral.
Logo em seu início, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Teori Zavascki, que faleceu em 2017. O caso só voltaria ao plenário em agosto de 2023, com o voto de Alexandre de Moraes, que havia sucedido Zavascki. É preciso registrar a importância da ministra Rosa Weber, que consignou seu voto ao deixar o Supremo, e do ministro Luís Roberto Barroso, que manteve a discussão na pauta da corte e concluiu o julgamento.
Com a tese fixada, em que quantidades de maconha inferiores a 40 gramas são presumidas como voltadas ao autoconsumo, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estima que um terço dos condenados por tráfico de maconha no país podem ser beneficiados. A propósito, o colegiado determinou a realização de mutirão pelo CNJ para identificar eventuais beneficiários da decisão.
É importante também registrar a centralidade que o racismo ocupou nos votos e na discussão em plenário. O STF registrou em sua decisão denúncias feitas há décadas por ativistas do movimento negro e dos direitos humanos, além de pesquisadores em geral.
Pesquisa recente do Insper concluiu que, apenas no estado de São Paulo, entre 2010 e 2020, 31 mil negros foram considerados como traficantes em situações similares a de brancos usuários. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a população branca encarcerada cresceu 215% entre 2005 e 2022, mas entre a população negra o crescimento foi 1,8 vezes maior, com aumento de 381,3%.
É importante lembrar que a atual Lei de Drogas, objeto do recurso julgado, foi sancionada em 2006 e que, atualmente, um terço das pessoas presas respondem por tráfico de drogas, proporção que chega a absurdos 62% das mulheres presas. É indiscutível: trata-se de uma discussão de base para a justiça social, racial e de gênero.
Até aqui, olhamos para o copo meio cheio, mas há também o outro lado. Para começar, é preciso atravessar a Praça dos Três Poderes e olhar para o Congresso Nacional, cujo presidente, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), patrocinou com sucesso uma PEC para atacar a função jurisdicional do Supremo. A flechada busca inserir na Constituição Federal a criminalização do mero consumo de drogas, vulgarizando o texto constitucional.
A medida foi aprovada no Senado e também na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Ato contínuo à conclusão do julgamento, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mandou instalar a Comissão Especial que agora analisará a PEC. O populismo carcerário dos parlamentares já se alvoroçou, nesta cruzada a que se deu o péssimo nome de “pauta de costumes”.
Também temos as trapalhadas de Vossas Excelências. O ministro Dias Toffoli, membro do STF desde o início do julgamento, o interrompeu mais uma vez em março deste ano, em momento crítico da reação do Congresso ao Supremo. Ao apresentar seu voto, a que teve tempo de se dedicar, confundiu a todos, tanto que teve que complementá-lo no dia seguinte.
Já o ministro André Mendonça, na penúltima sessão do julgamento, interpelou o presidente do STF para denunciar o “ativismo judicial” da corte, gravíssimo na medida em que a descriminalização do consumo de drogas jamais teria se dado fora do Poder Legislativo no mundo afora. Errado: só na América Latina, Colômbia, Argentina e México tiveram decisões neste sentido por suas cortes superiores. Depois, o ministro se retratou.
Também vale mencionar o dito “exercício de autocontenção” pelo colegiado. Em se tratando de tema polêmico, sob os mais contundentes protestos do Congresso e em momento de fragilidade perante a opinião pública, o STF proferiu decisão um tanto envergonhada, meio manca, meio desastrada.
A começar pela limitação da discussão à maconha. A questão constitucional de fundo aqui é se os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição autorizam o legislador a criminalizar o mero consumo, individual e exercido por pessoa plenamente capaz, de qualquer substância que seja, lembrando que a lei brasileira não criminaliza a tentativa de suicídio. Em que pese o argumento de que o caso concreto era sobre réu que portava maconha, o ministro relator, Gilmar Mendes, iniciou o julgamento enfrentando a discussão e analisando o art. 28 da Lei de Drogas pelo que ele é de fato: a criminalização do consumo de qualquer droga.
Mesmo sendo só sobre maconha, descriminalizou, mas não despenalizou, já que o consumo continua proibido e punido, mas agora como um ilícito administrativo. Outro ponto central na discussão – a definição de um critério objetivo para diferenciar usuários de traficantes e, assim, afastar o determinismo racial da justiça criminal, reconhecido pelos próprios ministros – também ficou definido como mera presunção.
Até 40 gramas ou seis plantas fêmeas, presume-se usuário, o que a autoridade policial pode afastar caso presentes outros elementos que denotem o intuito mercantil, fórmula não muito diferente da adotada pela Lei de Drogas vigente. Já sabemos quais grupos sociais reunirão mais frequentemente os elementos que indicariam o objetivo comercial. Como regra de transição, aliás, fica tudo como está: em se encontrando drogas com alguém, o suspeito continua sendo conduzido à delegacia.
Por fim, justamente a regra de transição. A decisão determina que o limite de 40 gramas ou seis plantas fêmeas de cannabis vale até que o Congresso legisle sobre o tema, o que já está anunciado – e para breve. Aparentemente, o Congresso não vai tratar de limites de peso ou da distinção entre usuários e traficantes. Mas sim de aprofundar sua agenda retrógrada e inserir na Constituição que o mero consumo de maconha, ou qualquer outra droga, é crime.
Este ataque à jurisdição constitucional – e é ataque porque o Congresso só apresentou este debate como reação ao julgamento – pode até ser impedido pelo STF. O Congresso não tem a prerrogativa de emendar a Constituição a seu bel prazer, devendo respeitar sempre a garantia de direitos fundamentais da pessoa humana, e é disso que se trata aqui. A garantia do direito à privacidade, à intimidade, à inviolabilidade do lar, à presunção de inocência e ao igual tratamento de todos perante a lei.
Ao fim e ao cabo, parece que caberá ao próprio Supremo determinar se a mudança é para valer ou só mais um soluço de progresso logo solapado pelos reacionários de plantão.