A Lei 14.821/24 e a tutela jurídica da população de rua – Parte 1

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Em 16 de janeiro de 2024, foi promulgada a Lei 14.821, que instituiu a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua. O diploma normativo vem preencher repreensível lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se da primeira legislação federal a cuidar especificamente das pessoas com trajetória de rua.

Tratando-se de um marco histórico da luta por direitos deste segmento da população, a coluna Direito dos Grupos Vulneráveis inaugura uma minissérie de artigos sobre a PNTC-PopRua, buscando descortinar as principais novidades contidas na legislação.

Esse primeiro texto tem por escopo trabalhar a evolução da proteção normativa às pessoas em situação de rua, além das consequências sistêmicas advindas da vigência da Lei 14.821/2024.

Historicamente, a exclusão da população de rua encontra-se intimamente relacionada à evolução da pobreza, à exploração da mão-de-obra trabalhista e ao processo desigual de urbanização das grandes cidades. Como bem acentua Simões Jr., só faz sentido pensar em população de rua em aglomerações permanentes de pessoas, tratando-se, portanto, de fenômeno tipicamente urbano[1].

Embora não cuide de fato social recente[2], a situação de rua torna-se uma crise global de direitos humanos[3] na sociedade de consumo, onde pessoas com poder de compra se habituam à presença da pobreza extrema, sem se preocupar em erradicá-la.

Esse processo de normalização ou naturalização da marginalização social, conduz ao que Milton Santos denominou de pobreza estrutural[4], em que Estado e indivíduos não se sentem mais responsáveis pelos problemas da comunidade local, supostas dívidas da sociedade globalizada.

A aversão ao pobre, conceituada por Adela Cortina como aporofobia[5], revela justamente esse efeito deletério da sociedade neoliberal, a qual, adicta ao consumo e hostil à pobreza, ignora a vulnerabilidade social a sua volta, dirigindo repulsa aos despossuidos.

Dificulta-se, ademais, a formulação e a implementação de políticas públicas em favor da população de rua, cujos pleitos não interessam às agendas e pautas políticas. Ações esporádicas quase sempre evidenciam programas de viés assistencialista, sem, contudo, combater as raízes estruturais do problema (como, e.g., a falta de moradia urbana[6]).

Visando modificar esse cenário de invisibilidade, sobretudo a partir dos ventos democráticos trazidos pela Carta Constitucional de 1988, movimentos sociais se organizaram para pleitear direitos à população em situação de rua, iniciando com o Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável (MNCR) em 1999, seguido pelo Movimento Nacional de Luta e Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua (MNPR) em 2005[7].

A pressão dos movimentos sociais, seguida da atenção midiática conferida à chacina de pessoas em situação de rua no Centro de São Paulo em 17 de agosto de 2004 – data que marca o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua –, atraiu a atenção do Governo Federal, que, em 2005, realizou o I Encontro Nacional da População em Situação de Rua.

Posteriormente, durante o período compreendido entre agosto de 2007 e março de 2008, realizou-se a primeira colheita oficial de dados a respeito dessa população em âmbito nacional, publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua)[8].

Os dados coletados foram apresentados e discutidos perante o II Encontro Nacional da População em Situação de Rua, fornecendo uma base empírica para a construção da Política Nacional para População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto nº 7.053/2009.

Marco histórico da luta por direitos desta população, o Decreto nº 7.053 foi responsável por positivar o conceito de pessoa em situação de rua no ordenamento jurídico brasileiro, o qual é descrito como o: “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

Também trouxe princípios e diretrizes orientadores da Política Nacional, sendo possível destacar o atendimento humanizado e universalizado (art. 5º, inc. III), o respeito às condições sociais e diferenças pessoais (art. 5º, inc. V), o apoio à participação na formulação das políticas públicas (art. 6º, inc. VII) e a democratização do acesso e fruição dos espaços e serviços públicos (art. 6º, inc. X).

Realça-se, ainda, a instituição do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua – CIAMP-RUA (art. 9º), bem como a criação do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos para População em Situação de Rua, destinado à promoção e defesa dos direitos humanos dessa população (art. 15).

Em 2011, após as alterações promovidas pela Lei nº 12.435, as pessoas em situação de rua passaram a receber proteção específica na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993), titularizando o direito a serviços socioassistenciais de complexidade especial (art. 23, inc. II), regulamentado posteriormente pela Resolução nº 109/2009 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.

Os anos seguintes foram marcados pela publicação de importantes resoluções a respeito dos direitos das pessoas em situação de rua.

No âmbito do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), cite-se as Resoluções Conjuntas nº 1/2016 e nº 1/2017, que dispõem, respectivamente, sobre o conceito e o atendimento de criança e adolescente em situação de rua e sobre diretrizes políticas e metodológicas para seu atendimento no âmbito da Política de Assistência Social.

Já a Resolução nº 40/2020, publicada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, versa sobre as diretrizes para a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situação de rua. Merece destaque o enfoque conferido à interseccionalidade de identidades envolvendo às pessoas em situação de rua, bem como à implementação de direitos sociais, em especial os direitos à moradia, saúde e segurança.

A seu turno, a Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça, instituiu a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, visando assegurar um melhor acesso à justiça às pessoas em situação de rua, assim como superar as barreiras decorrentes das múltiplas vulnerabilidades associadas a este grupo.

Doravante, a Lei nº 14.489/2022, conhecida como Lei Padre Júlio Lancelotti, estabeleceu importante alteração na Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), vedando o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público, que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua.

Mais recentemente, a violação sistemática dos direitos das pessoas em situação de rua foi reconhecida no bojo da ADPF 976, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes. Em sede cautelar, o STF afirmou a existência de um potencial estado de coisas inconstitucional decorrentes da omissão do Poder Público em relação ao Decreto nº 7.053/2009, obrigando a elaboração de um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

Ganha destaque aqui o processo coletivo estrutural como técnica voltada a fazer frente à violação maciça de direitos fundamentais da população de rua, assumindo a jurisdição constitucional um papel corretivo diante das ações deficientes e omissões institucionais em larga escala.

Observa-se, portanto, que o advento da Lei nº 14.821 de 2024 se insere em um contexto mais amplo de conquista de direitos da população em situação de rua, agora consolidada em sede legislativa para “promover os direitos humanos de pessoas em situação de rua ao trabalho, à renda, à qualificação profissional e à elevação da escolaridade” (art. 1º).

Duas constatações preliminares parecem claras a este autor a partir do advento da novel legislação.

De um lado, que a interpretação e aplicação da Lei nº 14.821/2024 não pode se desligar da incansável reivindicação dos movimentos sociais e da própria luta da população de rua na reinvindicação por seus direitos.

Tal fato reforça a necessidade de que essa população continue a participar ativamente, por meio de seus coletivos organizados, dos processos decisórios de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações, políticas e programas estabelecidos pela legislação, inclusive em âmbitos municipal, estadual e federal.

Indispensável, ainda, o fortalecimento dos Comitês Intersetoriais de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP-RUA), cuja regulação foi recentemente modificada pelo Decreto 9.894/2019.

Doutro giro, possível sustentar a existência de um microssistema de proteção das pessoas em situação de rua no ordenamento jurídico brasileiro, hoje composto pelos Decretos 7.053/2009 e 9.894/2019, pela Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993), pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), pelas Resoluções 40/2020 do CNDH e 425/2021 do CNJ, e, finalmente, pela Lei 14.821/2024.

Juridicamente, a ideia de microssistema caminha ao encontro da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, afinal, ao instituírem regras de proteção específica às pessoas em situação de rua, os estatutos desenvolvem uma afinidade normativa incindível, interagindo e complementando-se para concretizar efetiva guarida a esta população marginalizada.

Muito embora se saiba que a positivação de direitos em sede legislativa é apenas o primeiro passo na conquista efetiva da cidadania (afinal “os lírios não nascem das leis”), a luta social por trás da defesa das pessoas em situação de rua parece ter ganho um importante capítulo na história das reinvindicações por justiça deste grupo vulnerável.

No próximo texto, abordarei aspectos específicos da PNTC-PopRua.

Até breve!

[1] SIMÕES JR., José Geraldo. Moradores de rua. São Paulo: Polis, 1992, p. 19.

[2] É possível observar a presença de grupos de pessoas habitantes das ruas desde a Antiguidade. Na Grécia, por exemplo, fatores como a decomposição da sociedade arcaica, a consolidação da propriedade privada e a expropriação de terras comuns, empurrou um grande contingente populacional vacante às Polis, dando origem aos primeiros grupos mendicantes urbanos. Em Roma, o fenômeno agrega novas motivações, tais como os despejos rurais, a dissolução de exércitos e o crescimento contingente de mutilados, os quais relegavam massas de pessoas à marginalização. SIMÕES JR., op. cit., p. 19-20.

[3] ONU. CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado e sobre o direito a não discriminação neste contexto, 2015, p. 02.

[4] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 69-70.

[5] CORTINA Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre. Um desafio para la democracia. Buenos Aires: Paidós, 2017.

[6] Para uma adequada compreensão do direito à moradia à luz das necessidades da população em situação de rua, conferir: MENEZES, Rafael Lessa Vieira de Sá. Direito à moradia da população de rua e seu estado de coisas inconstitucional (partes I e II), Revista Consultor Jurídico, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-19/rafael-sa-menezes-direito-moradia-populacao-rua-parte/ https://www.conjur.com.br/2022-nov-20/rafael-sa-menezes-direito-moradia-populacao-rua/

[7] COSTA, Daniel de Lucca Reis. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. Dissertação de Mestrado em Antropologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007, p.113.

[8] Rua: aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Secretaria Nacional de Assistência Social, 2009.