Orçamento secreto 3.0: a saga continua

  • Categoria do post:JOTA

No último dia 17 de junho o Direito Financeiro – e o constitucional – foi surpreendido com (mais uma) inusitada decisão: a designação de uma “audiência constitucional de conciliação” (ou seria uma “audiência de conciliação constitucional”?) para tentar um acordo em relação ao persistente “orçamento secreto”, que, apesar de já ter sido objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), parece continuar tão ou mais ativo do que antes.

O polêmico “orçamento secreto”, que ocupa o noticiário desde meados de 2021, surgiu a partir de denúncia de falta de transparência na autoria de emendas parlamentares que indicavam recursos orçamentários para destinações específicas. O orçamento, como lei que é, passa pelo crivo do Parlamento, que, por meio de emendas parlamentares, participa do projeto de elaboração da lei orçamentária.

No âmbito federal, o procedimento de emenda ao orçamento foi bastante regulamentado, principalmente após a Emenda Constitucional 85/2016, que instituiu o “orçamento impositivo”, dando maior poder aos parlamentares na destinação dos recursos públicos, com a obrigatoriedade da execução dos valores inseridos na lei orçamentária por meio das emendas.[1]

Com as emendas individuais, propostas pelos parlamentares, de bancada, de autoria coletiva, de comissão, propostas pelas comissões temáticas, e de relator, propostas pelo relator-geral da lei orçamentária, amplas são as possibilidades de participar do processo orçamentário. Por meio do desvirtuamento das funções das emendas de relator (sob a rubrica RP 9), os parlamentares, nos casos em que não tinham interesse em assumir a autoria da emenda, passaram a propô-las sob o “guarda-chuva” das emendas de relator, dificultando ou mesmo impedindo que se tornasse público quem era o autor de fato da emenda.[2] Com isso, obscureciam-se interesses envolvidos na propositura da emenda, que muitas vezes poderiam acobertar desvios de recursos e contrapartidas ilegais por ocasião da destinação dos recursos e execução da despesa a ela relacionada.[3]

A exposição midiática de um verdadeiro escândalo que se formou sobre o tema promoveu uma forte pressão para o fim da prática pouco transparente e não republicana, inclusive por meio da propositura de ações judiciais (ADPF 850, 851, 854 e 1014), o que resultou na decisão que a proibiu expressamente. Em dezembro de 2022, o STF, no julgamento das ADPFs impetradas contra a prática do “orçamento secreto”, asseverou que “É vedada a utilização das emendas do relator-geral do orçamento com a finalidade de criar novas despesas ou de ampliar as programações previstas no projeto de lei orçamentária anual, uma vez que elas se destinam, exclusivamente, a corrigir erros e omissões (CF/1988, art. 166, § 3º, III, alínea a)”.

No entanto, parece não ter surtido muito efeito, pois não demorou muito para criarem alternativas e manterem a essência da prática por outras vias. Por meio de negociações políticas, valores eram repassados por meio de recursos sob controle de ministérios, direcionados por portarias dos respectivos órgãos, e viabilizados por emendas sob a rubrica “RP 2”, continuando a deixar ocultos os verdadeiros autores e interessados no direcionamento dos recursos. Surgiu assim o “orçamento secreto 2.0”, contornando as restrições que surgiram para as práticas que inicialmente eram adotadas.[4]

Muitas das emendas, cuja autoria era anteriormente “assumida” pelo relator-Geral do orçamento, passaram a ser alocadas como emendas de comissão, o que também deixa oculto o real interessado nela, mantendo a falta de transparência que deu origem ao “orçamento secreto” em sua forma inicialmente concebida, e tornando sem efeito a proibição contida na decisão do STF.

O uso indiscriminado das “emendas Pix”, denominação dada às transferências especiais instituídas pela Emenda Constitucional 105/2019, que permitem o repasse de recursos diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente de celebração de convênios, viabilizadas por emendas individuais impositivas, também colabora para o déficit de transparência na aplicação dos recursos públicos. Constatam-se dificuldades em identificar a destinação dos recursos, bem como a fiscalização.

Valores expressivos, na casa das dezenas de bilhões de reais, continuaram a ser transferidos para estados e municípios por meio de emendas parlamentares ao orçamento, sem que seja possível ter ampla e total transparência no uso dos recursos e dos interessados envolvidos na operação, não obstante toda a divulgação, polêmica, indícios de desvios de recursos e até mesmo decisões judiciais sobre o tema.[5] O jornalista Daniel Weterman bem define: “a roupagem do mecanismo mudou, mas a essência permanece a mesma coisa”, acrescentando que “do ponto de vista da transparência, o orçamento secreto do governo Lula ficou ainda mais nebuloso e pior”.[6]

Os fatos chegaram ao conhecimento do STF no âmbito da ADPF 854, que reconhece a falta de transparência na aplicação dos recursos oriundos das emendas de relator – RP 9 e o prejuízo que causam à gestão das finanças públicas: “Também o destino final dos recursos alocados sob a rubrica RP 9 (emendas do relator) acha-se recoberto por um manto de névoas. Cuida-se de categoria orçamentária para a qual se destinam elevadas quantias (mais de R$ 53 bilhões entre 2020 e 2022) vinculadas a finalidades genéricas, vagas e ambíguas, opondo-se frontalmente a qualquer tentativa de conformação do processo orçamentário às diretrizes constitucionais do planejamento, da transparência e da responsabilidade fiscal”.

Nova tentativa de acabar com a prática vem agora com a recente decisão de realizar audiência de conciliação, designada para o próximo dia 1º de agosto, abrindo mais uma possibilidade de fazer com que o orçamento público esteja de acordo com as normas e princípios constitucionais.

Que o Direito Financeiro não é levado a sério, em face do frequente e reiterado descumprimento das normas aplicáveis, não é novidade. Que as decisões em matéria de Direito Financeiro não são cumpridas, essa não é a primeira vez. Mas chamar as principais autoridades da República para sentarem-se à mesma mesa e chegarem a uma composição que tem por objetivo fazer valer as normas e decisões, é uma inovação que só mesmo o Direito Financeiro é capaz de trazer para o mundo jurídico. Aguardemos o resultado, esperando boas notícias!

[1] Sobre esses temas, duas recentes obras são referência e de leitura imprescindível para conhecê-los – ambas de acesso livre e gratuito:  FARIA, Rodrigo Oliveira de. Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. Série Direito Financeiro (Coord. J Mauricio Conti). São Paulo: Blucher, 2023 (https://www.blucher.com.br/emendas-parlamentares-e-processo-orcamentario-no-presidencialismo-de-coalizao-9786555501797); FERREIRA, Francisco Gilney B. C. Orçamento impositivo no Brasil: da ficção à realidade. Série Direito Financeiro (Coord. J Mauricio Conti). São Paulo: Blucher, 2024 (https://www.blucher.com.br/orcamento-impositivo-no-brasil-da-ficcao-a-realidade-9786555503609).

[2] Vide texto com maior detalhamento, publicado neste mesmo espaço, e integrante da recém-lançada 2ª edição do livro “A luta pelo Direito Financeiro”: O “orçamento secreto”, in CONTI, José Mauricio. A luta pelo Direito Financeiro. 2ª ed. São Paulo: Blucher, 2024, pp. 181-186 (https://www.blucher.com.br/a-luta-pelo-direito-financeiro-9786555503326).

[3] Vide meus textos As emendas parlamentares, o “orçamento secreto”, a cooptação e a corrupção na política, publicado no Estadão, blog do Fausto Macedo, em 23.8.2021, e O “orçamento secreto” e a corrupção, publicado no Estadão, blog do Fausto Macedo, em 21.11.2022.

[4] Já me referi ao tema na oportunidade no texto “Orçamento secreto 2.0”: os repasses sem transparência e a farra fiscal que não quer parar, publicado no Estadão, blog do Fausto Macedo, em 28.4.2023 (https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/orcamento-secreto-2-0-os-repasses-sem-transparencia-e-a-farra-fiscal-que-nao-quer-parar/). Integra o livro “A luta pelo Direito Financeiro”, pp 249-252 (vide nota de rodapé 2).

[5] Em ano eleitoral, governo Lula mantém uso do orçamento secreto apesar de proibido pelo STF (Em ano eleitoral, governo Lula mantém uso do orçamento secreto apesar de proibido pelo STF – Estadão (estadao.com.br).

[6] Qual é a diferença entre o orçamento secreto de Bolsonaro e o orçamento secreto de Lula? Entenda. Estadão, 25.8.2023 (https://www.estadao.com.br/politica/qual-e-a-diferenca-entre-o-orcamento-secreto-do-bolsonaro-e-o-orcamento-secreto-do-lula-entenda/).