Na última semana, representantes de vítimas dos casos Barrios Altos e La Cantuta, duas matanças que resultaram em 25 mortes e pelas quais o ex-presidente peruano Alberto Fujimori foi condenado (e sobre os quais a Corte emitiu sentença nos anos de 2001 e 2006, respectivamente), fizeram uma solicitação de medida provisória à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) diante do avanço do projeto de lei, que pode levar à prescrição de crimes contra a humanidade cometidos antes de 2002
Para eles, a aprovação da lei afetaria “de maneira grave e irreparável” o direito de acesso à Justiça das vítimas nesses casos. Em audiência virtual realizada na semana passada, eles pediram a intervenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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Os familiares recordaram que, em 1995, foi aprovada no país uma lei de anistia que impedia a investigação contra funcionários das forças de segurança em casos graves de violações de direitos humanos em meio ao conflito armado interno dos anos 1980, 1990 e 2000. Na época, lembraram, a medida teve como efeito imediato o arquivamento e fechamento de inúmeras investigações, inclusive sobre o caso Barrios Altos, na ocasião em primeira instância, e a libertação de detidos pelo desaparecimento de estudantes e de um professor da Universidade de La Cantuta.
À época, familiares e representantes das vítimas recorreram ao sistema interamericano diante da falta de investigação e sanção dos responsáveis. A Corte IDH então considerou que o Estado peruano era responsável pelas violações cometidas e ordenou investigar, julgar e sancionar os responsáveis, em um dos casos considerados mais emblemáticos na jurisprudência do Tribunal.
“As leis de impunidade foram revertidas ao determinar-se que eram inadmissíveis as disposições de anistia, prescrição e estabelecimento de excludente de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e sanção dos responsáveis das graves violações de direitos humanos como torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados. Desde então, foram abertas investigações antes fechadas como efeito da lei de anistia, incluindo dos casos Barrios Altos e La Cantuta. E foram condenados autores imediatos, incluindo o presidente Fujimori”, afirmou Gloria Cano, advogada da Associação Pró Direitos Humanos, lembrando que em tentativas seguintes projetos de lei similares acabaram barrados.
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Na audiência da última semana, familiares afirmaram que o novo projeto de lei agora em trâmite é inconstitucional e contrário à Convenção Americana. A resposta dos congressistas peruanos, porém, têm sido de ameaça, afirmam.
“Estamos diante de um risco de dano irreparável e de extrema gravidade e urgência do direito à justiça das vítimas e, por isso, solicitamos à Corte a aplicação de medidas diante dessa ameaça iminente”, pediram aos juízes do Tribunal.
Representantes das vítimas afirmam que, caso o projeto de lei seja promulgado, os condenados em crimes de lesa humanidade seriam liberados sem garantia de justiça e sem cumprir as penas impostas pelos tribunais nacionais, sem que tivessem oferecido elementos para esclarecer o paradeiro de desaparecidos ou reparações civis em casos que ainda assombram as famílias.
Para eles, a Corte deve adotar medidas provisórias para garantir o direito das vítimas e evitar o desacato às normas. Eles fizeram um apelo ao Estado peruano para que “se abstenha de aprovar o projeto de lei e qualquer normativa similar”.
“Durante os últimos 30 ou 40 anos temos exigido não só uma investigação imparcial e individualização dos responsáveis pelas graves violações aos direitos humanos como também condenações efetivas. As sentenças que temos perigam ficar na impunidade diante desse projeto de lei de um Congresso ativo para defender violadores de direitos humanos, mas que não pensa nos direitos que afetam os familiares das vítimas. Tudo isso dentro de um governo autoritário que não respeita os direitos humanos e que desacata a sentença da Corte Interamericana. Não podemos ficar tranquilos enquanto há impunidade. Os violadores de direitos humanos dos nossos familiares estarão livres enquanto o Estado nos obriga a conviver com os assassinos dos nossos entes queridos”, disse uma das familiares de vítimas à Corte.
Segunda votação
O projeto de lei em xeque foi aprovado em uma primeira votação no início de junho com 60 votos favoráveis, 36 contrários e 11 abstenções. Falta ainda uma segunda votação antes o texto seja enviado ao Executivo para promulgação e entrada em vigor, ou para que seja analisado e enviado de volta ao Congresso.
Caso aprovado, o projeto de lei restringiria o alcance dos crimes contra a humanidade a períodos posteriores a 2002. De acordo com os parlamentares que apresentaram a proposta, como o Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional foi aprovado em 2002 e a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade em novembro de 2003, os crimes cometidos antes disso deveriam ser arquivados – entre eles, os casos Barrios Alto e La Cantuta.
Dados locais mostram que cerca de 550 pessoas seriam afetadas pela medida, cujo efeito mais criticado é a impunidade. Principalmente no caso de integrantes da Polícia Nacional do Peru (PNP), das Forças Armadas e outros funcionários envolvidos em casos de violações de direitos humanos durante o conflito armado peruano, entre os anos 1980 e 2000, e que poderiam apelar à nova lei. O ex-presidente Alberto Fujimori, por exemplo, condenado por crimes contra a humanidade, poderia ser beneficiado.
Com o progresso do debate no Congresso, a Corte IDH emitiu uma resolução prévia à audiência virtual, há cerca de dez dias, na qual solicitou ao Estado peruano a suspensão imediata da tramitação do projeto de lei que avança no Congresso.
No texto, o Tribunal pede ao Estado do Peru que, “para garantir o direito de acesso à justiça das vítimas dos casos Barrios Altos e La Cantuta, suspenda imediatamente o trâmite legislativo do projeto de lei 6951/2023-CR que precisa a aplicação e alcances do delito de lesa humanidade e crimes de guerra na legislação peruana que se encontra atualmente programado para segundo debate no Congresso da República do Peru, até que a Corte Interamericana de Direitos Humanos conte com todos os elementos necessários para pronunciar-se sobre a solicitação de medidas provisórias e seu impacto nos casos Barrios Altos e La Cantuta resolvidos por esta Corte”.
Segundo a juíza Nancy Hernández López, presidente da Corte IDH, o objetivo “é receber observações e informações do Estado e demais intervenientes, analisar todos os elementos e adotar uma resolução definitiva sobre o caso solicitado”.
“Intromissão”, dizem congressistas
A resolução da Corte IDH, porém, provocou reações no país, e congressistas peruanos emitiram um comunicado no qual afirmam rejeitar “qualquer forma de intromissão nacional ou estrangeira”.
“O Peru é uma república democrática, social, independente e soberana, de acordo com o artigo 43 da Constituição Política do Estado. O Congresso da República, primeiro poder do Estado peruano, é igualmente independente nas decisões que por mandato constitucional e legal correspondem a ele. Portanto, rejeitamos qualquer forma de intromissão nacional ou estrangeira em nossas decisões. O Congresso da República, com total independência e autonomia e nas oportunidades que considere conveniente, tramitará os projetos de lei ditados pelas comissões correspondentes”, afirmaram representantes do Poder Legislativo em um comunicado assinado pelo Departamento de Comunicação e Imagem Institucional do Congresso peruano.
Na audiência virtual da semana passada, o Estado peruano definiu como “indevida” a solicitação de medidas provisórias por parte dos representantes de familiares das vítimas.
“O Estado peruano não pode deixar de manifestar sua preocupação pelo estado de indefensibilidade do Estado com esta solicitação de medida provisória por parte dos representantes das vítimas que, embora tivessem conhecimento desde fevereiro da tramitação deste projeto no Congresso, esperaram até 6 de junho para solicitar a intervenção da Corte por uma ‘suposta urgência’ em um trâmite de segunda votação”, disse o agente do Estado peruano Cesar Pastor Briceño.
Ele afirmou que causou “incômodo” e “transtorno” o prazo de poucos dias concedido ao Estado peruano para que se manifestasse perante a Corte IDH. Disse, ainda, que toda a argumentação de solicitação de medidas provisórias foi feita com base em “suposições” e que o projeto de lei não vulneraria diretamente o acesso à Justiça de vítimas dos casos Barrios Alto e La Cantuta.
O Estado peruano não foi claro, porém, sobre os reais impactos que uma eventual aprovação do projeto de lei poderia ter sobre decisões condenatórias em casos analisados pela Corte IDH, e se isso eximiria os responsáveis e anularia todas as disposições sobre o tema até a atualidade.