Em coluna publicada recentemente na Folha, Cecília Machado opina sobre a tributação das remessas internacionais. A polêmica, que ficou conhecida como “taxação das blusinhas”, foi resolvida diplomaticamente pelo Congresso Nacional, que não quis bater de frente com nenhum dos dois lados: entre revogar a isenção — como pediam as empresas nacionais — e mantê-la — como queriam as plataformas estrangeiras —, o legislador optou por uma tributação com alíquota reduzida de 20%. Tributou, mas não muito.
A conclusão sugerida já no título da coluna (“A taxa das blusinhas incide sobre os mais pobres”) baseia-se em um interessante artigo acadêmico que analisou as vendas da Shein nos Estados Unidos, país que possui uma isenção para importações de US$ 800, bem superior aos US$ 50 do Brasil. Por lá, afirmam os autores do artigo, a isenção tem um componente progressivo e a sua revogação prejudicaria especialmente as famílias mais pobres e as minorias sociais. Por aqui, conclui Machado, o resultado provavelmente vai ser o mesmo: “os mais pobres serão os maiores prejudicados”.
Mas a conclusão sumária e simples está errada. A questão da tributação das remessas internacionais é um problema complexo e essa complexidade se dá em pelo menos duas dimensões.
Em primeiro lugar, a legítima preocupação com os direitos econômicos de famílias vulneráveis não pode se restringir às fronteiras nacionais, sobretudo quando se analisa o caso a partir da realidade norte-americana. Ao trazer para a equação “os mais pobres” deve-se lembrar que a pobreza é um fenômeno global e heterogêneo: para que uma família pobre dos Estados Unidos adquira roupas a preços baixíssimos é necessário que do outro lado do mundo esteja uma família ainda mais pobre produzindo essas roupas em regime de trabalho escravo.
Seria equivocado atribuir a responsabilidade pelas condições de trabalho desumanas e pela violação de direitos cometidas pela indústria do fast fashion aos seus consumidores, especialmente aos consumidores mais pobres que acabam tendo pouca margem de escolha diante da escassez de recursos e alternativas. Mas aqueles que se propõem a pensar sobre o problema devem ser capazes de vislumbrar, senão a sua complexidade, ao menos os interesses econômicos e políticos envolvidos na discussão.
Não pode passar despercebido no debate que os países ricos do Norte global enviam para os países pobres do Sul toneladas de roupas usadas. Apenas Gana recebe 15 milhões de peças por semana. Nesse bota-fora global os Estados Unidos são o campeão absoluto, tendo exportado 719 milhões de quilos de roupas descartadas em 2018. Ou seja, o hiperconsumo nos Estados Unidos – ainda que beneficie as famílias mais pobres de lá – transforma-se em 719 milhões de quilos de lixo que são empurrados para outros países. Uma catástrofe ambiental que prejudica as pessoas pobres das regiões menos desenvolvidas do mundo.
A segunda dimensão do problema diz respeito à tributação em si. O que tem sido noticiado como um aumento de imposto, na verdade é uma tentativa de igualação. Os produtos estrangeiros devem ter o mesmo tratamento dos nacionais. Para garantir que isso aconteça assinam-se extensos tratados internacionais que preveem que o produto estrangeiro não pode sofrer nenhuma discriminação em relação aos produtos nacionais.
O Acordo Geral de Tarifas e Comércio, de 1947, parte da premissa de que os países poderiam ser seduzidos por questionáveis interesses protecionistas para impor tributos específicos apenas no intuito de prejudicar a venda de mercadorias estrangeiras. Daí a solução do tratado: fica proibido o tratamento desfavorável e garantido o tratamento igual.
Mas o que acontece no caso das remessas internacionais é o contrário: mercadorias importadas recebem tratamento mais vantajoso do que o reservado às mercadorias brasileiras. Enquanto as importadas pagam 17% de ICMS e 20% de imposto de importação, dos produtos fabricados no Brasil cobra-se IPI, ICMS, PIS e Cofins. Isso para não falar da pesada carga tributária que incide sobre os salários e dos juros altíssimos que impedem o investimento no país. Males que não afetam na mesma intensidade as empresas estrangeiras.
O privilégio das blusinhas importadas é uma situação tão inverossímil que escapa ao objeto de qualquer tratado. A correção depende da revogação da isenção criada com o objetivo de permitir o envio de remessas entre pessoas físicas, em uma época na qual o mundo e o comércio internacional eram outros.
Aqueles que compram produtos importados devem pagar os mesmos tributos daqueles que compram um produto nacional. Se não por razões estratégicas – para evitar que a indústria nacional pereça –, ao menos por razões jurídicas, por uma questão de igualdade entre as empresas brasileiras e as estrangeiras. Que a carga tributária sobre o consumo penaliza os mais pobres é outro problema, com o qual infelizmente nos familiarizamos.
Mas a sua solução não passa pela concessão de privilégios a empresas estrangeiras, mas sim pela reforma da tributação do consumo, por programas de devolução de tributos pagos por famílias de baixa renda, como o cashback previsto na Emenda Constitucional 132/23 e pela reforma da tributação da renda e do capital.
Revogada a isenção – caminho que, por enquanto, o Congresso Nacional não quis percorrer – a competição entre os produtos nacionais e estrangeiros seria resolvida pelos preços que continuarão diferentes. Desta vez, em razão das diferenças nos custos de produção de empresas situadas em países diferentes. Esse custo, por si só, mereceria nossa atenção no contexto da ausência de uma política nacional de desenvolvimento. Mas esse é outro problema, um que realmente penaliza os mais pobres, e que o Brasil se recusa a atacar de frente.