Como Assange conseguiu sua liberdade?

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Julian Assange desperta paixões e ódios, especialmente no mundo polarizado em que vivemos. Para a esquerda, um herói da liberdade de expressão (bem, essa seria uma causa tradicionalmente defendida pelos liberais à direita). Para a direita, um traidor que colocou em risco a segurança nacional dos EUA (em outros contextos, Assange poderia ser visto como um inimigo da esquerda).

O caso Assange, do ponto de vista jurídico, demanda uma análise sóbria e desapaixonada, se quisermos entender o que levou o jornalista e os EUA a um acordo que foi benéfico para ambos.

O primeiro aspecto a se ressaltar é o de que Assange estava preso há seis anos no Reino Unido sem julgamento. É um tempo de detenção “provisória” injustificável, em qualquer Estado democrático de Direito. Lembre-se que a prisão decorria de um pedido de extradição formulado pelos EUA junto ao governo britânico. O pedido de extradição não era para cumprimento de pena nos EUA, mas sim para que ele pudesse ser processado sob aquela jurisdição.

A pretensão americana em estender sua jurisdição para aplicar sanção criminal a Assange é bastante duvidosa do ponto de vista do direito internacional. Assange não é cidadão americano nem praticou nenhum ato a ele imputado em território dos EUA. A acusação era de espionagem e de pôr em risco a segurança nacional do país e de seus agentes no estrangeiro. O jornalista australiano teria se apropriado indevidamente de documentos secretos do governo americano, promovendo sua divulgação pelo site WikiLeaks.

A defesa do jornalista sempre negou que ele tenha pessoalmente hackeado os documentos secretos, pois ele apenas os teria recebido de uma fonte e promovido sua publicação. Assim, nos termos do precedente da Suprema Corte United States v. New York Times (1971), ele estaria protegido pela cláusula de liberdade de imprensa da Primeira Emenda da Constituição. Os advogados de Assange alegam que ele estava sendo processado nos EUA pelo livre exercício da profissão de jornalista.

Ocorre que a Suprema Corte dos EUA não tem uma jurisprudência clara que garanta a aplicação da Primeira Emenda a estrangeiros não residentes. Tradicionalmente, os direitos fundamentais são reconhecidos aos cidadãos nacionais e a estrangeiros residentes no país ou sob sua jurisdição, o que incluiria pessoas que legalmente estão em trânsito no território nacional. Mas Assange não se encaixaria em nenhuma dessas hipóteses, e a Suprema Corte já reiterou de forma expressa que estrangeiros que apenas pretendam entrar nos EUA não gozam das garantias da Primeira Emenda (caso United States ex rel. Knauff v. Shaughnessy, 1950).

Foi justamente essa falta de clareza quanto aos direitos de Assange como réu que estava emperrando o processo de extradição do jornalista australiano para os EUA. Analistas do Judiciário britânico acreditam que a última instância da Justiça daquele país tinha uma probabilidade nada desprezível em negar a extradição por esse fato. E caso negada a extradição, haveria um mal-estar diplomático inegável entre Londres e Washington, embora, é claro o Judiciário do Reino Unido seja independente do Executivo.

Fato é que ambas as partes – Assange e o governo americano – tinham muito a perder, e a disputa judicial estava cada vez mais incerta e sem solução à vista. Abriu-se a possibilidade de um acordo pelo tradicional sistema de “plea bargain”, no qual o réu admite uma conduta criminosa em troca de uma pena branda.

Com a intervenção do governo australiano, Assange em tese está “se entregando” ao governo americano ao pisar em solo do país (no caso, o território federal das Ilhas Marianas, no Pacífico). Mas assim que pousar lá, irá direto para uma Vara Federal assinar o acordo já entabulado, pelo qual pegaria uma pena de seis anos, já cumprida na prisão de Londres. O governo americano evita uma derrota judicial no Reino Unido que o humilharia. Assange não corre o risco de pegar uma prisão perpétua.

Fico imaginando a surpresa do juiz federal designado para atuar na circunscrição das isoladas e modorrentas Ilhas Marianas, que, acostumado a julgar brigas de bêbados na praia, do nada recebe para homologar um processo que está nas manchetes de todo o mundo.