Um dos primeiros ensinamentos aos alunos de Direito Penal ou de Processo Penal é a aplicação da legislação no tempo. O professor demonstra a importância do estudo desse conteúdo para a identificação da lei a ser aplicada no caso concreto.
Para isso, o docente apresenta tanto a Constituição Federal (art. 5º, XL) quanto o Código Penal (arts. 2º, 3º e 4º) e expõe que a lei penal não poderá retroagir a fatos anteriores à sua vigência. Explica que esse preceito básico observa o princípio da legalidade disposto no art. 1º do Código Penal e no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”) e que isso possibilitará segurança jurídica aos cidadãos, porque o Estado não poderá reprimir condutas que não sejam vedadas expressamente pela legislação.
O mesmo professor também dirá para os seus alunos que essa norma possui uma exceção: “salvo para beneficiar o réu”. Isto é, em regra, a lei penal só poderá ter efeitos prospectivos. Entretanto, se nova legislação beneficiar o réu de alguma forma (novatio legis in mellius) ou, até mesmo, descriminalizar a conduta (abolitio criminis) seus efeitos deverão retroagir para alcançar o agente.
Além disso, será frisado que essa retroatividade será a qualquer tempo, não importando o status do processo. Assim, o Código Penal (art. 2º, caput e parágrafo único) determina que, mesmo havendo trânsito em julgado da sentença penal condenatória, deverão os benefícios da nova lei retroagir. Esse mesmo raciocínio é utilizado pela Constituição Federal, que, como exposto, torna como direito fundamental a retroatividade de norma benéfica e não abre qualquer tipo de exceção para isso.
Essa breve digressão se fez necessária para apresentar ao leitor que, por vezes, o legislador elabora um projeto de lei penal sem levar em consideração as consequências que a modificação poderá gerar.
O caso em questão é o PL 4372/2016, da autoria do então deputado federal Wadih Damous (PT-RJ), o qual teve sua tramitação aprovada sob o regime de urgência pela Câmara no último dia 12. O projeto “define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências”.
Em seu texto, que possui dispositivos interessantes, como a impossibilidade de o Ministério Público oferecer denúncia fundamentada apenas com as declarações do delator, existe a previsão de inclusão do § 3º no art. 3º da Lei 12.850/2013, o qual dispõe que “[…] somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor”.
Além disso, deve-se levar em consideração os apensos, principalmente o PL 4699/2023, que altera a redação do art. 4º, § 7º, IV da Lei 12.850/13 para determinar que o juiz deverá, no momento da homologação do acordo, verificar a “voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, presumindo-a ausente na hipótese de privação cautelar da liberdade”.
Como se observa, as alterações não podem ser menosprezadas, pois trazem para a legislação uma discussão que há muito se tem na doutrina: a verificação da voluntariedade do colaborador preso e o seu prejuízo na elaboração da colaboração. Ou seja, o réu preso – independente de ter praticado o crime – busca minorar ou dirimir toda repressão estatal e, para isso, aceitará se submeter às condições impostas pelos acusadores. Com as devidas adaptações, seria o caso de a pessoa confessar um crime – ainda que não tenha praticado – para evitar ou cessar a tortura.
Essa vantagem era conhecida pelo Ministério Público. Basta analisar manifestação realizada pelo Ministério Público Federal em operações da Lava Jato no sentido de que “a conveniência da instrução criminal mostra-se presente […] também na possibilidade de a segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos”.[1]
A despeito de esse debate ser extremamente importante, o objetivo deste texto não é abordá-lo, mas trazer uma discussão que, aparentemente, não está sendo realizada a contento: a possibilidade de as colaborações firmadas serem anuladas. Essa afirmação parece estapafúrdia, mas ao observar os ensinamentos básicos apresentados no início deste texto percebe-se que esse risco é concreto.
Isso porque a colaboração premiada, embora seja um negócio jurídico e tenha aplicação processual, tem natureza é híbrida, pois sua homologação impactará na aplicação da pena do colaborador, como a concessão de perdão judicial (art. 4º, § 2º, Lei nº 12.850/13), redução da pena (art. 4º, § 5º, Lei nº 12.850/13) etc., ou seja, há um impacto direto na liberdade.
Por essa razão, quando a legislação proíbe que seja homologada colaboração premiada realizada por acusado ou investigado em liberdade, essa norma possui um caráter benéfico e deverá retroagir para ser aplicada aos casos anteriores à sua vigência. Assim, grande parte dos acordos realizados na Lava Jato e o realizado por Ronnie Lessa, cujos fatos apresentados possibilitaram esclarecer o assassinato de Marielle Franco, poderão ser anulados, o que impossibilitará a condenação dos agentes criminosos, pois as provas obtidas deverão ser desentranhadas do processo.
Para evitar esse tipo de situação, um dos três caminhos deverá ser seguido: o primeiro é incluir um dispositivo regulamentando a vigência dessa norma, a exemplo do art. 91 da Lei 9.099/95, o qual imporá a obrigação de os colaboradores, na hipótese de estarem soltos, revalidarem os termos do referido negócio jurídico. Essa opção pode ser problemática, porque nem todos os colaboradores estarão soltos e isso inviabilizará a revalidação. Além disso, deve-se ter em mente que a Constituição Federal é bastante categórica ao dispor que a norma benéfica deverá retroagir. Isto é, não há exceção.
O segundo caminho a ser seguido é manter a redação e deixar que o Supremo Tribunal Federal (STF) realize a modulação dos efeitos desse dispositivo – o que não será novidade, como se pode observar nos casos do acordo de não persecução penal (HC 185.913), mas extremamente complexo, pois não há consenso entre os ministros. Por isso, essa não seria a melhor solução, uma vez que poderia gerar mais tensão não só entre os ministros, mas entre o STF, a sociedade e o Legislativo, abalando ainda mais a legitimidade do tribunal.
A última opção seria definir a natureza jurídica da colaboração premiada como norma processual pura, cujas alterações não invalidarão os atos já praticados, porque estes observaram a legislação vigente à época (tempus regit actum), conforme o art. 2º do Código de Processo Penal. Assim, a novidade legislativa só seria observada para as novas delações premiadas.
Independente de qual caminho seja adotado, a solução apresentada será polêmica e gerará um grande debate jurídico, pois não há dúvida de que os representantes dos réus buscarão – e com razão – aplicar os benefícios aos seus clientes e, caso tenham êxito, poderão colocar a pá de terra que faltava para matar grandes operações.
[1] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PRR – 4ª Região. Habeas Corpus nº 5029050-46.2014.404.0000. Conversão de prisão temporária em preventiva. Operação lava jato. Pacientes executivos do grupo OAS. Existência de pressupostos autorizativos da prisão preventiva. Artigo 312, do código de processo penal. Procurador Manoel Pastana. Porto Alegre, RS, nov. 2014.