O setor de saneamento básico no Brasil tem testemunhado avanços significativos nos últimos anos, especialmente no que tange à competência atribuída à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para elaboração das normas de referência.
A uniformização visa padronizar as práticas regulatórias entre as mais de 90 agências infranacionais (ERIs), proporcionando uma estabilidade regulatória essencial para a segurança jurídica, redução de assimetrias e aumento de previsibilidade, fatores essenciais para garantir a atração de investimentos. No entanto, a efetividade dessas normas só poderá ser verdadeiramente avaliada com o tempo, à medida que os projetos avancem e as práticas regulatórias das ERIs se consolidem.
As normas de referência decorrem da atribuição e competência a União para instituir diretrizes (art. 21, XX, da Constituição Federal da República do Brasil), convertendo-se na competência para edição de normas gerais. As normas versam sobre um rol taxativo de temas – até então sem parâmetro regulatório.
Assim, ao estabelecer o conteúdo e a finalidade das normas, a ANA se consolida como o alicerce da articulação entre os titulares dos serviços, as ERIs e os operadores dos serviços de saneamento. Apesar de atribuído à ANA o exercício da função normativa geral, os artigos 22 e 23 da Lei 11.445/2007 preservam a coexistência de outros órgãos reguladores, garantindo a possibilidade de regulação suplementar para atender as particularidades locais e regionais.
Em verdade, após um breve período de incertezas decorrente de mudanças no governo federal e reorganização das competências ministeriais, a ANA vem envidando esforços para cumprir os prazos estabelecidos pela Agenda Regulatória do chamado Eixo 9, voltado ao setor do saneamento básico.
Com efeito, nos primeiros seis meses deste ano, a ANA aprovou cinco Normas de Referência (NRs) para a regulação do setor de saneamento básico, além de outras cinco em fase de elaboração (e.g., consulta pública, relatório de análise das contribuições – RAC, ou análise de impacto regulatório – AIR). Estas normas cobrem uma variedade de áreas essenciais, desde práticas de governança até a regulação tarifária, passando pela matriz de riscos contratuais e metas de universalização.
Ainda em janeiro, a publicação da Norma de Referência 4/2024 trouxe diretrizes importantes sobre governança para as ERIs. Esta norma estabelece requisitos para a tecnicidade e independência decisória, bem como a autonomia funcional, administrativa e financeira das entidades reguladoras. A publicação foi essencial para garantir a harmonização dos entes reguladores do setor, dispondo sobre as competências do ambiente regulatório e os requisitos devem ser comprovados em até dois anos, com um prazo maior de quatro anos para a constituição de um quadro próprio de pessoal, permitindo uma reestruturação gradual das agências infranacionais.
No mesmo mês, a Norma de Referência 5/2024 foi publicada, focando na matriz de riscos para contratos de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Esta norma aborda, de forma geral, a adoção das boas práticas referentes à concepção de matriz e alocação de riscos, aspectos de transição para que contratos existentes não licitados internalizem suas diretrizes, prazos para as ERIs editarem regulamentos específicos e comprovarem a aderência à norma e a relação dos riscos com a sua respectiva alocação.
Continuando com os esforços regulatórios para cumprimento da Agenda Regulatória, em fevereiro, a ANA publicou a Norma de Referência 6/2024, que dispõe sobre os modelos de regulação tarifária dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Entre os pontos abordados na NR 6, destaca-se a definição dos modelos de regulação contratual e de regulação discricionária, detalhando as hipóteses em que cada modelo é aplicável aos diferentes tipos de operadores do setor. Também são detalhadas as diretrizes gerais do processo tarifário, do reajuste tarifário, da revisão tarifária periódica para o modelo discricionário e das revisões ordinárias para o modelo de regulação por contrato.
O setor de resíduos sólidos urbanos, que também estava na expectativa de normas de referência específicas foi contemplado, em março, com a publicação da Norma de Referência 7/2024, que regula os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos urbanos (SLU e SMRSU). Um dos upsides da norma está nas diretrizes para a destinação final dos resíduos sólidos urbanos, inclusive prevendo a possibilidade de recuperação energética através na conversão de resíduos sólidos em combustível, energia térmica ou eletricidade, por meio de processos, tais como digestão anaeróbia, recuperação de gás de aterro sanitário, combustão, gaseificação, pirólise ou coprocessamento.
Em maio, a publicação da Norma de Referência 8/2024 delineou metas progressivas de universalização de abastecimento de água e esgotamento sanitário, indicadores de acesso e sistema de avaliação, revogando as disposições da Norma de Referência 2/2021. Para fins de monitoramento e avaliação do alcance das metas de universalização, incluem-se os índices já conhecidos de atendimento de 99% dos domicílios com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
Também em linha com o disposto na Lei 14.026/2020, foi ressalvada a possibilidade de dilação do prazo quando os estudos para a licitação da prestação regionalizada apontarem para a inviabilidade econômico-financeira da universalização nos prazos mencionados, desde que não ultrapasse 1º de janeiro de 2040 e haja anuência prévia da ERI, que, em sua análise, deverá observar a modicidade tarifária.
A NR dispõe, ainda, sobre os requisitos e diretrizes para as metas progressivas de expansão e o sistema de monitoramento dos indicadores. Com relação aos critérios e prazos de observância para adoção da norma, a resolução dispõe que o prazo para início da verificação dos requisitos será de 12 meses contados da publicação da norma (10 de maio de 2024).
Além das Normas de Referência, a ANA também publicou em maio a Instrução Normativa 1/2024, que estabelece procedimentos necessários para a operacionalização do cálculo da indenização de investimentos não amortizados ou depreciados, conforme previsto na Norma de Referência 3/2023, detalhamento importante para os agentes do setor, no sentido de garantir a viabilidade econômico-financeira dos contratos e a continuidade dos serviços.
Por fim, no dia 3 de junho, a ANA iniciou a consulta pública e a audiência pública sobre a norma de referência para reajuste tarifário dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A audiência/consulta pública irá discutir os impactos tarifários em virtude da inflação, recompondo a perda inflacionária e não deixando que a capacidade de investimento e prestação desses serviços pelos operadores seja afetada.
Nesse sentido, essa NR busca assegurar que os reajustes sejam previsíveis e equitativos, protegendo tanto os interesses dos consumidores quanto dos prestadores desses serviços, promovendo a estabilidade regulatória e a confiança no setor.
Ao lançar mão do soft law, o legislador busca incitar que as entidades se harmonizem em um sistema nacional, ainda que a regulação permaneça fragmentada nas mãos das agências subnacionais.
Os esforços da ANA para cumprir a Agenda Regulatória e garantir a uniformidade regulatória são notáveis. Ainda persiste o desafio relativo à implementação prática dessas normas e adaptação das ERIs às novas diretrizes. A adoção dos preceitos gerais pelos entes titulares e reguladores subnacionais garantirá um ambiente regulatório coeso e articulado, respeitada a competência suplementar dos órgãos locais e a titularidade dos serviços.
As normas de referência publicadas até agora pela ANA estabelecem um marco regulatório que promete melhorar a governança, aumentar a segurança jurídica e atrair mais investimentos para o setor de saneamento básico. Agora, a atenção volta-se para a capacidade das ERIs de se adaptarem às novas diretrizes e o contínuo monitoramento e avaliação das metas estabelecidas. Ao final, espera-se que a desejada uniformidade regulatória garantam estabilidade e sustentabilidade aos projetos.