A MP 1227/24, que dentre outras disposições vedava a compensação de créditos da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins com outros tributos federais, causou forte reação do setor empresarial, tanto que uma semana depois, foi objeto de devolução parcial pelo presidente do Senado, perdendo a eficácia em seu trecho mais polêmico.
Mas o que saltou aos olhos durante o curto período de debates foi o quanto começou a “cair a ficha” de diversos setores acerca do viés arrecadatório da reforma tributária, aprovada no final de 2023 com a promulgação da Emenda Constitucional 132 e cuja regulamentação está sendo apreciada pelo Congresso Nacional no PLP 68/24, rendendo críticas que até então soariam imponderadas.
No livro Agronegócio sem fronteiras: temas atuais de gestão, financiamento e tributação[1], lançado no início de 2023 – antes, portanto, da votação da PEC 45/19 –, propus-me a promover a análise do conteúdo e tramitação de diversos projetos de lei e propostas de emenda constitucional que tinham por escopo reformar o sistema tributário brasileiro, anotando que:
“(…) muito provavelmente neste momento as propostas acima já terão sofrido alterações em seus textos e andamentos (…), mas a viabilidade de aprovação de uma Reforma que efetivamente modifique o sistema tributário brasileiro fatalmente dependerá de amplo debate acerca de uma prévia reforma na organização do Estado, ou seja, do pacto federativo e da repartição das arrecadações”.
Como sabido agora, a PEC 45 não somente foi votada e aprovada em regime de urgência, como não foi precedida da devida discussão da reforma administrativa; pelo contrário, acelerou-se o processo justamente quando o teto de gastos públicos foi afrouxado e o novo arcabouço fiscal implementado, concentrando ainda mais arrecadação na União (mais Brasília), e limitando a autonomia orçamentária dos estados e municípios (menos Brasil). A esse respeito, anotei:
“(…) os tributos mais complexos do ponto de vista de apuração, declaração e fiscalização representam justamente as maiores arrecadações da União, Estados (e Distrito Federal) e Municípios (…), portanto a criação do IBS aos moldes do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) (…) certamente reduziria custos de compliance para as empresas (…), porém adicionaria complexidade na outra ponta, a da repartição de receitas, e consequentemente resistência política para sua aprovação”.
Também como sabido, a EC 132 delegou a repartição de arrecadação do ICMS e do ISS (que serão substituídos ao final do período de transição) a um Comitê Gestor, com a participação da secretaria da Receita Federal. Se antes os estados e municípios já eram dependentes dos repasses da União, agora também a destinação de suas principais receitas sofrerá interferência política. Mas não para por aí.
Um dos principais argumentos de defesa da aprovação da reforma tributária foi a necessidade de simplificação do sistema tributário brasileiro, classificado de forma genérica como “manicômio”. Ser crítico à reforma, portanto, representaria ser supostamente contra o desenvolvimento econômico do país. Entretanto, dos diversos PLs e PECs que tramitavam no Congresso Nacional, a EC 132 consolidou a PEC 45, que previa a criação do IBS em substituição de cinco tributos incidentes sobre o consumo – o IPI, a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins, o ICMS e o ISS – e o PL 3887/20, que propunha a criação da CBS.
Contudo, o texto promulgado dispôs acerca da extinção paulatina dos citados tributos e a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), do Imposto Seletivo (IS) e da Contribuição Estadual sobre produtos primários e semielaborados, ou seja, substituíram-se cinco tributos por outros quatro!
Ademais, ainda que o PLP 68 defenda em sua Exposição de Motivos que “a Reforma Tributária trará benefícios para o País, para as empresas e, sobretudo, para todos os brasileiros e brasileiras”, não há como sustentar a pretendida simplificação por meio de seus 499 artigos e 310 páginas, apenas no âmbito de lei ordinária. A esse respeito, aliás, anotei:
“(…) como o assunto em pauta é a simplificação (e não alteração da carga tributária), unificar a apuração e o recolhimento do IRPJ e da CSLL, ambos incidentes sobre o lucro das empresas, assim como da Contribuição para o PIS/Pasep, Cofins e o IPI, igualmente não cumulativos (como regra) e incidentes sobre a cadeia de consumo, aí incluindo a Contribuição Previdenciária, desonerando a folha de pagamentos para todos os setores, sem distinção, já representaria enorme avanço em termos de racionalização”.
Mesmo que sejamos otimistas e torçamos pelo sucesso da reforma tributária, é fato que teremos de esperar até 2033 para atestar se o objetivo da simplificação fora comprovadamente atingido, e mais, se o novo sistema não implicou aumento de carga tributária, já que, outro argumento para a urgência na aprovação foi justamente a promessa de neutralidade tributária.
Sobre esse ponto, torna-se verdadeiramente desafiador tecer críticas ou comentários, haja vista que nem a EC 132, nem o PLP 68 dispôs uma linha sequer sobre os percentuais que serão aplicados na cobrança da CBS e do IBS. Portanto, fundamentarei a análise nas estimativas dos especialistas do Ministério da Fazenda de que a alíquota média será de 26,5%, tomando por base o setor de alimentos.
Atualmente, adubos, fertilizantes, corretivos, defensivos, sementes e mudas, além de carnes bovina, suína, ovina, caprina e de aves, peixes, assim como café, açúcar e soja, gozam de alíquota zero ou suspensão da incidência de Contribuição para o PIS/Pasep e de Cofins (Lei 10.925/04 e IN RFB 2.121/22) e a maior parte tem sua alíquota de IPI ou é não tributada (NT). Da mesma forma, boa parte desses produtos goza de isenções, diferimento, reduções de base de cálculo e créditos outorgados ou presumidos de ICMS (Convênio ICMS 100/97 e regulamentos).
Assim, mesmo que o PLP 68/24 preveja a redução a zero da das alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre a venda de produtos da chamada Cesta Básica Nacional de Alimentos (art. 114) e em 60% nas operações com “alimentos destinados ao consumo humano”, “produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura” e “insumos agropecuários e aquícolas” (arts. 117 a 131), ainda assim a alíquota final de 10,6% fatalmente representará um aumento considerável de carga tributária para o setor produtivo.
Isso sem contar a criação do IS (arts. 393 a 423), que será cumulativo e incidirá sobre “a produção, extração, comercialização ou importação de bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, ou seja, uma versão piorada do IPI, que era não cumulativo e já era seletivo, mas em função da essencialidade do produto e não de seu impacto à saúde ou ao meio ambiente.
Portanto, sem as almejadas simplificação e neutralidade, remanescem como justificativas para a pressa na aprovação da Reforma Tributária apenas a necessidade premente de aumento de arrecadação e a sua concentração pela União, porém para muitos, infelizmente, a prova só veio com a edição da MP 1227.
Assim, “porquanto não alcançamos o sistema tributário ‘dos sonhos’, seguimos planejando e otimizando os negócios com as regras atuais, antecipando-nos e protegendo-nos de potenciais efeitos indesejados, já que também em termos de ambiente político e regulatório, ‘o ótimo é inimigo do bom’, finalizo eu, no citado livro.
[1] Volume 2. Organização Scabora, F. C. e Sticca, R. M. – São Paulo: Dialética, 2023, págs. 55-80.