Esta reportagem compõe uma série do Estúdio JOTA em parceria com a Amazon sobre os debates em torno da criação do mercado regulado de carbono no Brasil
Uma das principais apostas para cumprir o imperativo de reduzir emissões de gases de efeito estufa é a regulamentação do mercado de carbono. No Brasil, o tema volta a ser discutido no Senado – que terá a missão de sanar atuais indefinições para garantir a coexistência e o equilíbrio de diferentes modelos de créditos de carbono.
No mercado regulado de carbono, as emissões de atividades econômicas podem ser taxadas (carbon tax) ou ficar sujeitas a um limite previamente determinado (cap and trade). Esse segundo modelo regulatório é proposto no Brasil, então empresas cujas emissões estiverem acima dos limites pré-definidos serão autorizadas a compensar os excessos por meio da negociação de créditos de carbono com os negócios que ficaram abaixo desse teto.
Já no mercado voluntário, empresas compram créditos (vinculados a projetos florestais de captura de carbono, por exemplo) para compensar as suas atividades sem obrigação ou metas legais. Ele acontece em quase todo o mundo, inclusive no Brasil.
De acordo com um estudo da Waycarbon e da Câmara de Comércio Internacional (ICC Brasil), o mercado voluntário brasileiro foi responsável por ofertar 12% dos créditos negociados mundialmente (45,28 MtCO2 em créditos). Até 2030, o Brasil pode atender 48% da demanda global por créditos de carbono no mercado voluntário (com cerca de 960 MtCO2) e 28% no regulado (1,2 mil MtCO2), sobretudo com soluções baseadas na natureza.
Por isso, a adoção de uma regulamentação é um posicionamento estratégico cada vez mais urgente – sem um livro de regras bem definidas, não há um incentivo financeiro claro para que as empresas busquem soluções para o problema.
“Uma boa regulamentação do mercado regulado brasileiro, que garanta integridade aos nossos créditos, é uma grande oportunidade para o Brasil reduzir os seus custos de descarbonização e, ao mesmo tempo incentivar o mercado voluntário”
Rodrigo Rollemberg, secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria do MDIC
Avanço do debate
No Brasil, a regulamentação proposta pelo PL 2148/2015 foi aprovada na Câmara dos Deputados e voltou para o Senado (sob o número 182/2024) para ser discutida novamente. O projeto cria a pedra fundamental do mercado regulado de carbono: o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).
Também já estabelece limites: a empresa que emitir mais de 10 mil toneladas de dióxido de carbono por ano estará incluída no sistema e precisará dar transparência às emissões. Enquanto aquela que ultrapassar o teto legal de 25 mil toneladas terá a obrigação de compensar as suas atividades com aquisições de créditos de títulos de projetos de emissões evitadas.
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A necessidade de fazer a agenda caminhar o quanto antes é uma unanimidade entre especialistas e dentro do próprio governo. “Os mercados regulados criam obrigações e incentivos para a redução gradativa das emissões, atraindo investimentos para processos produtivos e atividades mais sustentáveis”, explica Thiago Assunção, head de soluções baseadas na natureza da One Tree Planted e membro da LACLIMA. “Contudo, eles não substituem a necessidade de uma rápida e efetiva redução das emissões”, pondera.
O mercado regulado se tornou medida urgente: a ONU entidade estima que, no cenário atual, a chance de limitar o aquecimento global em 1,5ºC é de apenas 14%
O secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria do MDIC, Rodrigo Rollemberg, destaca que avançar na agenda verde é imprescindível para o Brasil se tornar um líder mundial nesse campo.
“Uma boa regulamentação do mercado regulado brasileiro, que garanta integridade aos nossos créditos, é uma grande oportunidade para o Brasil reduzir os seus custos de descarbonização e, ao mesmo tempo incentivar o mercado voluntário, já que a lei votada no Congresso permite que parte das emissões do setor regulado sejam compensados por créditos voluntários”, explica Rollemberg.
Assim, as companhias podem buscar no mercado voluntário os meios para cumprir os requisitos legais impostos pela regulação – investindo em projetos de emissões evitadas (como empreendimentos de redução do desmatamento) e negociando créditos entre o setor.
Equilíbrio entre os mercados regulado e voluntário
Essa participação dos créditos gerados no mercado voluntário no SBCE é uma particularidade do modelo brasileiro. Conforme o texto em discussão no Congresso, iniciativas voluntárias que atendem a requisitos fixados em lei (para garantir a confiabilidade da mensuração, por exemplo) são habilitadas a comercializar seus créditos no sistema regulado.
Esse ponto foi incluído quando o projeto passou do Senado à Câmara dos Deputados. O relator Aliel Machado (PV-PR) optou por agregar outros PLs que já vinham sendo discutidos pela casa, resultando em um novo texto com mudanças significativas. “Apesar de eles terem as suas independências, eles se entrelaçam no momento em que o mercado voluntário pode gerar crédito para o regulado”, explica o deputado ao JOTA.
O texto ainda não esclarece a fundo como a negociação será feita dentro do sistema brasileiro de comércio de emissões. Um dos riscos apontados é que, dependendo da forma como a lei for interpretada, um mesmo crédito possa vir a ser contabilizado duas vezes. Isso pode ser contornado nas regulamentações subsequentes, que, se bem amarradas, serão capazes de mitigar ameaças nesse sentido.
Arte: Christina Moreira/ JOTA
O secretário Rollemberg, do MDIC, vê problemas na forma como a Câmara modificou o texto que havia sido anteriormente aprovado. Para ele, a discussão sobre o mercado regulado e o voluntário deveria ser melhor direcionada.
“Isso pode trazer algumas inseguranças jurídicas que não seriam boas. Há muitas dúvidas de como irá funcionar REDD+, como vão conversar os projetos jurisdicionais com os individuais… No nosso entendimento, isso deveria ser tratado em um projeto diferente ou outra regulamentação”, afirma.
Mas, no Senado, ainda haveria a possibilidade de aparar arestas.
REDD+ jurisdicional
A participação do mercado voluntário no SBCE inclui a divisão em programas de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD+, na sigla em inglês) jurisdicionais e os criados de forma particular, por projetos, que geram créditos.
No caso do REDD+ jurisdicional, as regras e definições são feitas no âmbito regional – como em um estado, por exemplo. Já os programas particulares são relacionados com uma área específica e projetos de conservação desenvolvidos naquele território. Ambos geram créditos no mercado voluntário e podem conviver harmoniosamente do ponto de vista prático e regulatório.
Em certa medida, o REDD+ jurisdicional é uma discussão mais latente na América Latina e em regiões em que o combate ao desmatamento e o reflorestamento são urgentes – Colômbia e México possuem o modelo, por exemplo. No Brasil, onde as mudanças no uso da terra lideram as emissões, o REDD+ jurisdicional é um importante mecanismo para redução de emissões em escala.
Ainda, um dos principais benefícios desse modelo é o incentivo à preservação e recuperação de florestas de modo mais amplo, se estendendo por estados ou municípios, e não se restringindo a fronteiras mais curtas de apenas uma propriedade, por exemplo. Nesse caso, políticas públicas efetivas são remuneradas pelo creditamento – o que gera novos investimentos para as comunidades locais.
Um dos principais argumentos em favor do REDD+ jurisdicional é a sua capacidade de elevar o nível da qualidade das iniciativas, havendo maior controle sobre os projetos e para que as metas sejam alcançadas.
Quando não há essa credibilidade, um dos riscos é o fenômeno conhecido como leakage (vazamento, em inglês), quando a redução das emissões em uma área é acompanhada pelo aumento em outra proximidade – frequentemente, esse deslocamento é para fora das fronteiras da jurisdição onde as políticas foram implementadas.
Para evitar isso, são necessárias iniciativas que foquem no corte das emissões de forma ampla. O que o REDD+ jurisdicional prevê é justamente um olhar abrangente para o território.
“Ele amplia a capacidade de neutralizar os falsos positivos. Estudos mostram que projetos individuais muitas vezes podem deslocar o desmatamento para as áreas ao lado. Ao olhar para uma região mais abrangente [no caso de um modelo jurisdicional] se neutralizam os impactos ambientais negativos”, explica Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (OCBio/FGV).
Para evitar que o desmatamento apenas mude de endereço, são necessárias iniciativas que foquem no corte das emissões de forma ampla. O que o REDD+ jurisdicional prevê é um olhar abrangente sobre o território
Sob essa visão de ampliar o alcance das iniciativas, um dos potenciais do mercado regulado de carbono está em gerar políticas de longo prazo. No Brasil, a estratégia regulada pode criar demanda para créditos de carbono oriundos de atividades florestais, por exemplo.
A grande cobertura florestal disponível dá destaque extra para projetos de conservação florestal e de restauração de áreas degradadas. Por outro lado, a existência de grupos de povos originários e de comunidades tradicionais também exige um aprofundamento de estudos para que os planos propostos pelo poder público os beneficiem de forma justa – temas que foram explorados pelo PL aprovado pela Câmara.
As experiências globais
A integração entre os mercados regulado e voluntário seria um inovação brasileira, incomum no resto do mundo. Mas a experiência internacional aponta que o mercado de carbono tem tido sucesso na redução de emissões de gases de efeito estufa quando construído sobre um projeto ambicioso.
Viviane Romeiro, diretora de Clima & Energia & Finanças Sustentáveis do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), lembra que o sistema de comércio de emissões da União Europeia, o mais antigo e conhecido do mundo, gera uma redução de 2,2% nas emissões reguladas ao ano. A marca é considerada relevante, mas, a falta de ambição nos objetivos traçados na primeira fase de funcionamento gerou poucos frutos.
Romeiro aponta que, no caso brasileiro, medir o impacto do projeto será uma tarefa nebulosa já que a agropecuária, cujas atividades representam parcela relevante das emissões do país, não está incluída no projeto de lei. De todo modo, se o SBCE for restrito a atividades mais relacionadas à indústria e parte do setor energético, isso significaria uma cobertura de, pelo menos, 10% a 15% das emissões nacionais.
“Em termos relativos pode parecer pouco, mas significaria algo em torno de 200 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (200 MtCO2e) sob regulação, um volume de emissões de GEE maior do que o de muitos países sul-americanos, como Peru, Paraguai e Uruguai”, calcula Romeiro.
Em comparação a experiências internacionais mais consolidadas, uma das principais diferenças é que, de modo geral, o mercado começa regulamentando setores específicos, enquanto por aqui o escopo deve ser mais amplo – ao mirar em volume de emissões, sem delimitar as atividades abarcadas.
Até 2022, havia 46 mercados regulados espalhados pelo mundo – além de 68 iniciativas de precificação de carbono implementadas ou agendadas, segundo levantamento da Waycarbon. Em breve, a União Europeia passará a sobretaxar produtos com uma pegada de carbono acima da considerada aceitável pelo bloco.
O primeiro mercado regulado de carbono veio justamente da União Europeia. O EU ETS (sigla em inglês para Esquema de Comércio de Emissões da União Europeia) foi uma herança do tratado de Kyoto – assinado em 1997 durante a terceira COP e que passou a vigorar em 2005. O intuito do EU ETS era ajudar os países a atingirem as suas metas de redução de emissões.
Mas o bloco europeu optou por iniciar o projeto com setores estabelecidos e delimitados: energia, produção de cimento, papel e celulose, para citar alguns. O programa se expandiu e hoje promove a redução gradual do limite de emissões permitidas.
O programa começou como um piloto, entre 2005 e 2007, regulando emissões de CO2 de geradores de energia e indústrias intensivas em energia. A penalidade por descumprimentos era baixa; no período, os principais ganhos eram precificar o carbono e monitorar as emissões.
A partir de 2008, a redução das permissões de emissão do óxido nitroso, um dos causadores do efeito estufa, passou a entrar na contabilidade. Houve o aumento da multa por desrespeito aos limites, interligação com a compra de créditos internacionais, e o setor de aviação passou a ser regulado.
A principal virada se deu há dez anos, quando o bloco inteiro passou a ter o mesmo limite de emissões, permissões extras passaram a ser mais raras, mais setores e gases poluentes foram incluídos. Além disso, 300 milhões de permissões foram reservadas para financiar tecnologias de energia renovável e captura e armazenamento de carbono.
Embora o mercado europeu seja o mais maduro, na América Latina também já há exemplos disponíveis. A Colômbia tem um deles. No país, o sistema em vigor alia uma taxação sobre carbono com o comércio de permissões.
Por lá, segundo Assunção, da LACLIMA, a possibilidade de se reduzir o imposto pago na comercialização de combustíveis fósseis com a compensação de créditos levou a um aumento da demanda por projetos de conservação florestal, “ajudando a desenvolver e profissionalizar o mercado em poucos anos”.
No México, o sistema de comércio de emissões foi criado em 2013. Além da comercialização de créditos de carbono, o país também emprega uma taxa sobre as emissões advindas do gás natural como fonte energética – o primeiro país americano a fazer isso –, mas as medidas foram lançadas separadamente.
O que chama a atenção no modelo mexicano é a governança. Foi criado um um modelo descentralizado nos estados, com participação da sociedade civil, e que busca a integração com outros mercados regulados, como o da Califórnia (EUA). A gestão é feita por comunidades locais que têm participação direta na gestão de áreas preservadas e projetos ambientais para geração de créditos.
Também cabe observar que os mercados jurisdicionais podem se conectar uns aos outros desde que exista uma “fungibilidade” entre eles, com características e parâmetros semelhantes. Isso permite que estados negociem créditos, no Brasil ou no exterior, por exemplo. Na Suíça, por exemplo, o mercado local se conecta com o comércio de emissões da União Europeia. Já o sistema implementado por Quebec, no Canadá, opera em conjunto com o sistema em vigor na Califórnia.
Para Joana Chiavari, diretora de pesquisa do Climate Policy Initiative, vinculada à PUC-Rio, o modelo de regulamentação proposto no Brasil tem dois grandes trunfos: possuir um desenho que estabelece os limites anuais de emissão, aumentando assim a segurança com relação à capacidade do país em atingir a meta; e uma flexibilidade para as companhias na busca por uma solução para reduzir seu impacto no aquecimento global.
Mas o país ainda tem desafios básicos a enfrentar até uma boa regulamentação de nível nacional – como um alinhamentos dos requisitos regulatórios com a política climática nacional, normas que garantam clareza e assegurem uma elevada integridade ambiental ao tratar do uso de créditos de carbono de fontes não reguladas (offsets).
Acelerar essa pauta precisa acontecer o quanto antes: está distante o objetivo de conter o aumento da temperatura a 1,5 ºC até o fim do século, estipulada pelo Acordo de Paris há quase uma década, segundo informes do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. A entidade estima que, no cenário atual, a chance de sucesso é de apenas 14%.