Ao mesmo tempo em que tenta liderar importantes pautas relacionadas ao clima e à desigualdade social, o Brasil tem colocado sua diplomacia para amarrar convites às principais lideranças mundiais, de forma a impedir um possível esvaziamento do evento do G20 que o país vai sediar.
Esses são os principais desafios do governo Lula para o encontro que acontece em novembro deste ano, no Rio de Janeiro. A avaliação é do professor doutor Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), que coordena o Grupo de Reflexão sobre o G20 no Brasil na mesma universidade.
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O professor pondera que, por ter uma posição mais “universalista” na sua política internacional, o Itamaraty tem feito esforços para trazer Vladimir Putin, presidente da Rússia, para o encontro. Isso pode gerar repulsa de outros chefes de Estado, diante dos efeitos catastróficos da Guerra da Ucrânia, iniciada em 2022.
“Lula tem que trabalhar para que não ocorra o que nós vimos em outras reuniões do G20. Por exemplo, a do ano passado, Xi Jinping, uma das estrelas do grupo, não foi à reunião na Índia, por discordância da política indiana. Isso marcou um esvaziamento do evento”, pontua Menezes.
O pesquisador também chama a atenção para como o país vai tratar as emergências climáticas, sobretudo diante da tragédia do Rio Grande do Sul, com as enchentes que afligem os gaúchos desde o começo de maio.
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“O fato é que o Brasil agora colocou o tema do meio ambiente como eixo da sua política externa. E conseguiu trazer a COP 30 [Conferência do Clima] para o país, depois de Bolsonaro ter se recusado a sediar a COP 25. A tragédia no Rio Grande do Sul, então, pode ser um paradigma para tratar de soluções urgentes na estruturação das grandes cidades”, afirma.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista
Professor, gostaria que o senhor falasse sobre o grupo de pesquisa que o senhor coordena na UNB sobre o G20. O que os senhores pesquisam e como isso pode contribuir para o encontro de países que o Brasil vai sediar?
O Grupo de Reflexão sobre o G20 no Brasil, que está sediado aqui no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, foi uma iniciativa que eu tive com um grupo de colegas pesquisadores, que estão em outras universidades, tanto no estado de São Paulo quanto em outras partes da federação. Como o próprio título do trabalho sugere, a ideia é refletir sobre o G20 no Brasil, seus efeitos e legados.
Já há colegas que têm pesquisa sobre o Brics, outros que se dedicam mais a estudar as relações Brasil-China, outros Brasil-Estados Unidos, Estados Unidos-América Latina, e acompanham também processos negociadores, como do Mercosul e da União Europeia.
Agora, enfim, chega a vez do Brasil presidir e sediar o encontro do G20, em um contexto que, a cada novo encontro anual, melhora a pressão para a participação da sociedade civil. Nosso grupo de estudo não integra oficialmente nenhuma das estruturas do G20, embora possua membros que tenham participado do T20, que são os think tanks [grupos de reflexão] das 19 maiores economias do mundo, somado à União Europeia e agora também da União Africana. O T20 tem esse papel de fazer uma interface, de certa forma, com a sociedade civil, especialmente a academia, a universidade e outros centros de pesquisa.
Nosso grupo tem produzido textos para o boletim Lua Nova. São dois textos por mês. Embora seja uma publicação acadêmica, é um material que está na internet e não é voltado apenas para um público específico. É também para o público em geral. Pode ser utilizado na escola de ensino médio, em cursinhos e cursinhos populares.
Embora o G20 tenha expandido sua capacidade de dialogar sobre outros assuntos, o encontro ainda possui uma centralidade no debate econômico. O que países como o Brasil e outros do Sul Global pleiteiam de urgente nesta seara?
O G20 surge, em 1999, como um mecanismo emergencial de cooperação, depois de uma sequência de crises econômicas. Nós tivemos uma crise no México, em dezembro de 1994. Depois tivemos, em 1997, a crise asiática, que afetou a Coreia do Sul e fortemente a Malásia, além de outros países do continente. E, em 1999 nós tivemos tanto a crise do Brasil, do Plano Real, quanto a crise da Rússia, no final de 1998.
Então, o G20 financeiro surge inicialmente como um encontro de presidentes de Bancos Centrais e ministros da economia, como seus nomes equivalentes em cada país, para conversar sobre a natureza e a origem dessas crises. Isso porque todas elas passaram a desafiar a capacidade do Fundo Monetário Internacional, o FMI, de contribuir na sua resolução.
A partir da crise de 2008, o G20 financeiro assume um lugar que pertencia ao G7, um grupo criado em 1975 como G5, mas que em 1986 passou a integrar também Itália e Canadá. Com esse novo protagonismo, diferentes países que integram o G20 começaram a pressionar por reformas na governança financeira. E o principal locus dessa reforma é exatamente o Fundo Monetário Internacional.
E por quê? Por que no FMI, nós temos uma sobrerrepresentação da União Europeia, pois hoje eles têm cerca de 30% do poder de voto, mas não correspondem mais à economia que tinham quando o Fundo Monetário foi criado, logo após a Segunda Guerra Mundial.
Nesses 70 anos, entre o momento da criação do FMI e o período pós-crise de 2008, nós vemos que a União Europeia e a Europa, como um todo, perdeu espaço na economia mundial. E com isso, países como o Brasil, China e Índia, começam a se articular dentro do Fundo Monetário Internacional. Inicialmente eles criam o Brics e passam a agregar também a África do Sul. Uma parte da reforma foi finalizada em 2010. Mas a segunda parte, que seria efetivada e implementada em 2021, até hoje aguarda análise e possível aprovação do Congresso dos Estados Unidos.
É possível, então, esperar que o Brasil, na condição de presidente, cobre uma posição mais firme para mudar a participação no FMI?
A agenda que o Brasil traz para o G20 não é uma agenda muito ambiciosa. O sistema de presidência do bloco é uma troika. Isso significa que a última presidência, no caso a Índia, mais o atual presidente, nesse caso o Brasil, e o próximo, que é África do Sul, devem organizar a agenda do encontro.
Há uma feliz coincidência que todos fazem parte do Brics e têm essa pauta em comum, mas ainda assim há outros interesses fortes em disputa, como os da própria União Europeia e dos Estados Unidos.
Por outro lado, o Brasil avança no tema da agenda social. O Brasil escolheu como temas o combate à fome e à pobreza, e depois adicionou o tema da desigualdade. E ainda vai pautar as questões das mudanças climáticas.
Nessas áreas, o presidente Lula já é bastante conhecido. Quando ele presidiu o país, entre 2003 e 2010, ganhou notoriedade por colocar o tema da fome como um tema global. A estratégia do Brasil é clara. Pegar a sua experiência de políticas sociais de combate à pobreza e reverberar no G20 financeiro.
Até por ser um aliado econômico da Rússia no Brics, o governo brasileiro tem feito um esforço para que Vladimir Putin participe do G20. Quais podem ser as consequências deste movimento?
O Brasil tem se empenhado muito mesmo nessa função de trazer o Putin. O presidente Lula tende a adotar uma postura universalista, afinal o Brasil não tomou lado na guerra da Ucrânia – nem a favor da Ucrânia, nem a favor da Rússia. Ao mesmo tempo, resistiu às sanções impostas pelos Estados Unidos, pelos respectivos aliados europeus dos Estados Unidos. Então, o Brasil tende, com isso, a expressar um gesto de autonomia.
Mas, na prática, isto pode ter um efeito contrário. Por quê? Porque é difícil a gente imaginar que representantes europeus, que tem feito um esforço para isolar Putin e ajudar a Ucrânia, deem uma pausa nisso tudo para se reunir no Rio de Janeiro durante dois dias com a presença de Putin.
O presidente Lula tem que trabalhar para que não ocorra o que nós vimos em outras reuniões do G20. Por exemplo, a do ano passado, Xi Jinping [presidente da República Popular da China], uma das estrelas do grupo, não foi à reunião na Índia, por discordância da política indiana. Isso marcou um esvaziamento do evento.
Então, o Brasil, ao mesmo tempo que tem uma posição de consenso, uma posição multilateral e inclusiva, não quer excluir ninguém de antemão. Mas, nesse caso, acredito que o próprio presidente russo avalia a sua autoexclusão ou até mesmo a sua participação por vídeo .Outro ponto é que a reunião acontece nos dias 18 e 19 de novembro. E no dia 5 de novembro nós temos eleições nos Estados Unidos, uma eleição muito acirrada. Geralmente, demoram entre quatro a cinco dias até sair o resultado final do vencedor. Ali pelo dia 10 de novembro, uma semana antes do início do G20, é que nós vamos ficar sabendo se o Biden vai ser reeleito ou se o Trump venceu. Ou seja, a participação dos Estados Unidos também não está confirmada até agora.
Se eles não vierem, é uma ausência muito grande. Se ainda tiver a ausência da China, seria muito sentido. E a chegada do Putin afastaria provavelmente outros mandatários. É um risco grande de esvaziamento.
O Brasil, então, luta contra esse esvaziamento…
O Brasil vem trabalhando muito. Está mobilizando toda a sua diplomacia para impedir isso, inclusive está convocando, ou seja, está buscando em centros de pesquisa, nas universidades especialistas para ajudar nos diferentes eixos.
Agora, o Brasil de certa forma exagerou um pouco no G20. O presidente Lula, em junho de 2023, assinou a portaria colocando todos os 36 ministérios para participar do G20. Tem ministério que não tem pauta para o encontro. Claro que o principal é, como nós já tratamos, o Ministério da Fazenda e o Ministério das Ações Exteriores. E é claro que o Ministério do Meio Ambiente é chave também, porque um dos eixos do G20 no Brasil é o das questões climáticas.
Presidir e sediar o G20 é a principal ação internacional do Brasil em 2024. Então, é uma prioridade para o governo lutar para que o evento tenha as principais lideranças globais e discuta temas importantes para o Sul Global.
Falando nas emergências climáticas, o Brasil viveu a terrível realidade das enchentes no Rio Grande do Sul. Além disso, o Brasil é uma das vozes internacionais no tema, tanto na figura de Lula quanto da ministra Marina Silva. O quanto isso pode influenciar a prioridade na discussão dessas pautas entre outros países?
Na agenda climática, o Brasil vai bem porque, no meu entendimento, foi um acerto trazer a Marina Silva de volta ao Ministério do Meio Ambiente. Ela foi uma figura que ajudou a desbloquear o Brasil internacionalmente.
Marina Silva foi ministra de 2003 a 2008 no governo Lula. Ela, com quase toda essa equipe que hoje a assessora, criaram o Plano de Combate ao Desmatamento da Amazônia (PPCDAm), que, de 2004 a 2012, ajudou a reduzir de 27.500 mil km² o desmatamento ilegal na Amazônia para 4.500 mil km² – o que é muito ainda, mas foi o menor índice que o Brasil já atingiu.
Foi o PPCDAm que abriu o caminho para o Fundo da Amazônia. Em 2009, a Alemanha e a Noruega, junto com a Petrobras, formataram o Fundo da Amazônia. Assim, 90% dos recursos passaram a vir da Noruega, 6% da Alemanha e 4% da Petrobras. O Brasil assumiu uma posição de destaque nas negociações climáticas a cada ano. Mas nós vimos que a questão ambiental no Brasil foi um dos alvos da política predatória do governo Bolsonaro.
O ex-presidente neutralizou o aparato de fiscalização no país, sob o Ibama. O ex-presidente Bolsonaro criou vários entraves para você conseguir aplicar multas e receber o dinheiro dessas multas. Tem uma quantidade enorme de projetos legislativos ainda da época de Bolsonaro e do Temer que vão na direção de uma política predatória. Seja veneno, desmatamento ilegal, grilagem de terra, a lei da água e assim por diante.
O fato é que o Brasil agora colocou o tema do meio ambiente novamente como eixo de sua política externa. E conseguiu trazer a COP 30 [Conferência do Clima] para o país. Era para ter sediado a COP 25, em 2019, mas Bolsonaro se negou a realizar esse evento.
Sobre a tragédia no Rio Grande do Sul, a questão climática pode ser um paradigma para o país a partir disso. Nós já vimos um gesto importante do Banco dos Brics, que foi ofertar cerca de US$ 1 bilhão para o Rio Grande do Sul. Uma linha de crédito muito importante, porque estima-se que, para reconstruir o estado, os valores podem estar perto de R$ 100 bilhões.
Ou seja, 5% desse dinheiro já veio num gesto do Banco dos Brics. O Brasil vai discutir a questão climática no G20 também já se preparando para a COP 30. Se tem uma lição que tem que ser tirada do Rio Grande do Sul, é a de que o Brasil precisa entrar, de vez, no século 21. E precisa assumir a agenda climática, junto com a desigualdade, como as duas agendas chaves do século 21.
Porque, senão, pode ser que tenhamos uma declaração ao final da reunião do G20 e essa declaração pode dar destaque às cidades inteligentes, à nova cidade, às chamadas Smart Cities… Mas isso é pouco. É preciso que o Brasil vá adiante. Precisamos repensar nossos grandes centros urbanos. Repensar essa ocupação desordenada do território brasileiro. É uma política de médio e longo prazo, não tem jeito.
Isso passa também por uma mudança na política tributária. Que essa nova mentalidade esteja expressa na repartição dos fundos constitucionais, que ela esteja expressa também na repartição do orçamento público. É por isso que temos que tratar essa tragédia como um paradigma, no sentido de que a gente possa aprender a necessidade de lidar com as emergências climáticas.
Não dá para tentar reconstruir a cidade do mesmo jeito que elas se encontravam. Nos mesmos locais, sem que a gente leve em conta o conhecimento científico acumulado e todas as transformações do planeta. O Brasil tem a oportunidade de liderar esse processo e ensinar ao mundo com a tragédia que ele mesmo sofreu.