A inclusão do tema de gênero nas questões tributárias é desafiadora. Muitas vezes, as discussões tributárias se limitam a aspectos técnicos, como por exemplo a relação do binômio base de cálculo e materialidade, o que ocupa grande parte das discussões sobre tributos no Brasil.
Ruth Ginsburg, em sua atuação como advogada, já demonstrava como gênero e direito tributário podem estar interligados, especialmente quando defendeu a possibilidade de dedução de despesas com cuidados para um homem solteiro que era o único cuidador de sua mãe, o que a época não era possível nos Estados Unidos[1]. Esse exemplo nos lembra que não há desconexão entre tratar da desigualdade de gênero no direito e a abordagem de questões técnicas tributárias.
Ainda, a título exemplificativo, ressaltamos que para compreender o conceito de renda à luz do direito brasileiro, é necessário ter em vista que mulheres auferem menos renda do que os homens, e se incluirmos o recorte de raça, a diferença pode aumentar mais ainda[2]. Também por isso, medidas como o não enquadramento da pensão alimentícia no conceito de renda podem minimizar os impactos decorrentes da desigualdade presente no contexto concreto da sociedade, conforme entendeu o STF na ADI 5422, em que a questão de desigualdade gênero fez parte da fundamentação dos votos prolatados[3].
Cite-se, ainda, que a carga tributária no consumo atinge mais a mulheres do que os homens, sobretudo, ante o seu caráter notadamente regressivo. A título de exemplo, podemos relembrar que mulheres necessitam de itens como absorventes higiênicos, dentre outros para manter sua dignidade, e compreender isso é entender de fato o que deve ser o conceito de seletividade.
Os exemplos são relevantes para relembrar que o estudo descontextualizado e somente abstrato não é suficiente para analisar as normas jurídicas e compreender seu real significado e alcance dentro do sistema jurídico pátrio.
Fixadas, pois, essas premissas, passemos a analisar brevemente o que a Constituição Federal traz sobre a questão de gênero e direito. Antes, porém, é fundamental apresentar à leitora ou ao leitor o conceito de gênero.
As concepções de gênero, conforme explica Judith Butler, “são significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente constituídos.”[4]
A partir da compreensão dessa ideia de gênero é possível observar que tal forma de designar as relações sociais entre mulheres e homens de modo a definir performances a serem realizadas por cada pessoa em razão do sexo biológico promove uma desigualdade no plano social que não decorre das características biológicas, mas sim da edificação de um corpo social pautado na estrutura patriarcal.
Desse modo, não é difícil concluir que ante a essas condições sociais, as mulheres sempre tiveram de lutar para conquistar seu espaço no debate público de maneira igual em relação aos homens.
Nesse cenário, acerca do estudos de direito tributário e gênero no Brasil, Tathiane Piscitelli, em artigo intitulado “Tributação de gênero no Brasil”[5], analisa que o debate acerca da relação entre tributação e gênero já está internacionalmente consolidado, apesar de incipiente no Brasil. Segundo a autora, a origem dessa discussão remonta ao movimento sufragista, já que a ausência do direito ao voto configurava-se em falta de representatividade legislativa e, como consequência, surge a questão referente à legitimidade para cobrança de impostos sobre mulheres. Piscitelli ainda explicita que se tratava de uma extensão do slogan no taxation without representation dentro do contexto de independência dos Estados Unidos.
No sistema constitucional brasileiro, a igualdade de gênero pode ser vislumbrada na análise da opção política-ideológica da Constituição Federal de 1988, de modo que o tratamento igualitário entre mulheres e homens, no Brasil, cuida-se de comando constitucional obrigatório sob pena de hialina violação constitucional e o Direito Tributário deve observar também a prescrição constitucional nesse ponto. Nesse sentido, acerca da igualdade entre mulheres e homens, leciona José Afonso da Silva:
Essa igualdade já se contém na norma geral da igualdade perante a lei. Já está também contemplada em todas as normas constitucionais que vedam a discriminação de sexo (art. 3º, IV e 7º, XXX). Mas não é sem consequência que o Constituinte decidiu destacar, em um inciso específico (art. 5º, I), que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. (…) Importa mesmo é notar que é uma regra que resume décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda que não se trata aí de mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações. Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional.(grifou-se)[6]
Em razão disso, parece lógico que todo e qualquer comando constitucional deva ser construído à luz da perspectiva de gênero, porquanto a Constituição Federal fez uma opção política e ideológica segundo a qual as mulheres devem necessariamente receber um tratamento jurídico à luz do princípio da igualdade em seu sentido material enquanto um pressuposto da realização dos objetivos da República nos termos do artigo 3º da CF e dos comandos insculpidos nos artigos 5º, I e 7º, XXX da CF[7].
Nessa perspectiva, em relação ao direito tributário, nota-se que ao se discutir a aplicação da legislação partindo-se do binômio materialidade versus base de cálculo, os dos conceitos de seletividade, progressividade, dentre outros, da mesma forma, deve-se levar em consideração o comando constitucional acerca da questão de gênero.
Diante disso, concluímos que perspectiva de gênero deve ser incorporada em todas as análises tributárias, sempre que possível. O direito tributário não pode ignorar a questão de gênero, pois a Constituição Federal exige tratamento igualitário entre mulheres, homens e pessoas que se identificam ou não com esses gêneros, especialmente, porque o conceito de gênero, como visto, advém de uma construção social e a sociedade brasileira elegeu enquanto um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, de modo que cabe também ao estudo do direito tributário incorporar este fundamento constitucional.
[1] Charles E. Moritz, Petitioner-appellant, v. Commissioner of Internal Revenue, Respondent-appellee, 469 F.2d 466 (10th Cir. 1972). Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/469/466/79852/
[2] “O rendimento médio mensal das mulheres (R$ 2.562) no 4º trimestre de 2023 foi 22,3% menor do que o recebido pelos homens (R$ 3.323). Entre todas as ocupadas, 39,9% recebiam no máximo um salário mínimo e, entre as negras, metade ganhava até esse valor (49,4%), enquanto essa proporção era de 29,1% entre as não negras e de 29,8% entre os homens (…)”. DIEESE. Mulheres no mercado de trabalho: desafios e desigualdades constantes. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/mulheres2024.pdf
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5422. Relator Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília 23 de ago. 2022. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15352860771&ext=.pdf Acesso em: 20 maio 2023.
[4] BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P. 24
[5]PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Tributação de gênero no Brasil. 2019b. Disponível em <https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2019/08/tributacao-de-genero-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 02 abr. 2023.
[6] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. P. 217-218
[7] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.