O não racismo como princípio constitucional processual penal

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Sem entrarmos em debate da diferença entre princípios e normas, podemos dizer que um princípio pode ser considerado constitucional, dentre outras características, quando está previsto na Constituição, possui fundamentalidade, generalidade e força normativa.

Os princípios orientam todo o ordenamento jurídico, influenciando a criação, interpretação e aplicação das normas de maneira coerente e harmônica, garantindo a proteção dos direitos fundamentais e promovendo valores essenciais como justiça, igualdade e dignidade.

No âmbito do processo penal, os princípios constitucionais processuais penais são diretrizes fundamentais estabelecidas pela Constituição Federal que orientam o funcionamento do processo penal, assegurando direitos e garantias aos acusados.

Eles servem como balizas para a atuação dos operadores do direito, promovendo um sistema de Justiça penal que respeita a dignidade e os direitos fundamentais dos acusados. E promovem a coerência e a unidade do sistema jurídico, ajudando a integrar e harmonizar diferentes normas e procedimentos legais. 

As consequências de algo ser considerado um princípio constitucional processual penal são significativas. Isso inclui a obrigatoriedade de observância por todos os operadores do direito, o controle de constitucionalidade das normas processuais penais, a orientação para a interpretação das leis, a proteção dos direitos dos acusados, e a orientação na formulação de políticas criminais. A observância desses princípios fortalece a legitimidade do sistema processual penal.

A Constituição de 1988 contempla em diversos de seus dispositivos o repúdio ao racismo:

a ausência de preconceito como um dos valores que norteia a Constituição servindo como diretriz de interpretação e aplicação das normas (preâmbulo);
a promoção do bem de todos sem preconceito de raça como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º, IV);
o repúdio ao racismo (artigo 4º, VIII) como um dos princípios que regem as relações internacionais;
o princípio da igualdade (artigo 5º, caput) que desdobra em prescrição de legislação para punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI) e na criminalização do racismo (artigo 5º, XLII);
proibição de diferenças salariais em razão da cor (artigo 7º, XXX); e na
proteção da criança, do adolescente e do jovem contra a discriminação (artigo 227).

Além da Constituição Federal, no campo de combate ao racismo o Estado brasileiro é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Americana de Direitos Humanos, Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (todas promulgadas por decreto). 

Há uma normatividade expressa de proibição de condutas racistas (não racismo) e de combate ao racismo (antirracismo) dentre os valores e princípios que norteiam a República Federativa do Brasil, além de legislação infraconstitucional que assegura a igualdade racial (Estatuto da Igualdade Racial) e dos tratados e convenções.

Pode-se afirmar, assim, que, oriundo da igualdade e dignidade humana, norteado pelo objetivo fundamental de uma sociedade sem preconceito, advém o princípio do não racismo. A luta contra o racismo tem embasamento no princípio da igualdade.

O princípio do não racismo é uma manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade, indo além da igualdade perante a lei, contemplando a ideia de vedação a práticas racistas. O não racismo, não como negação do racismo, mas como um ideal que tem por objetivo superar práticas racistas.

O valor fundamental do não racismo, inserido na Constituição Federal, é muito mais amplo do que a criminalização de condutas racistas. O princípio do não racismo – que deve ser interpretado no processo penal para além da noção de paridade de armas – reflete, de forma direta, nos diversos outros princípios constitucionais aplicáveis ao processo penal.

Pesquisas empíricas e dados estatísticos confirmam a realidade de que o negro é a parcela mais afetada pelo sistema de justiça criminal. A ligação estreita entre racismo e punição não é recente. A análise histórica da legislação penal e processual penal e do sistema de justiça criminal permite constatar que o negro, desde a época da escravização, é o alvo preferencial do sistema de justiça criminal.

Com o fim da escravização, o Estado assume o lugar dos senhorios, alterando os castigos para a punição penal. E o veículo que conduz à efetivação da criminalização do negro é o processo penal, sendo as agências de criminalização coadjuvantes das práticas processuais penais racistas. O racismo é um catalizador de práticas processuais penais.

No caso dos negros quando constatamos que são os mais abordados pela polícia, são os mais condenados, são os mais presos, são os mais mortos, evidenciando um impacto diferenciado em relação à realidade das pessoas brancas, escancara a fragilidade do princípio da igualdade, motivo pelo qual o princípio do não racismo deve ser fortalecido como uma decorrência da igualdade. 

No campo processual penal o princípio do não racismo tem um duplo aspecto: a) quando coíbe o legislador de elaborar leis que possibilitem a discriminação processual penal racial, ou seja, que na mesma situação diferencie os sujeitos em razão da cor/raça; b) quando impede que o negro, quando submetido ao sistema de justiça criminal, receba um tratamento diferenciado do dado aos não negros, em razão de sua cor/raça, impedindo a seleção penal racial, vedando práticas processuais penais racistas. 

A interpretação do princípio do não racismo deve se dar dentro do conceito de discriminação positiva, já acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, para que o princípio da igualdade não seja “desculpa” para não aplicação do não racismo. A discriminação positiva é no sentido de serem adotadas medidas para que, em sendo a raça determinante para a seletividade penal, ela deve ser determinante, também, para neutralizar as consequências da seletividade penal. 

Reconhecer o princípio do não racismo como um princípio constitucional processual penal é reconhecer a necessidade de um processo penal democrático, justo, onde a seletividade penal não seja baseada em critérios de raça/cor. É dar um passo, dentre muitos necessários, para o combate ao racismo no nosso sistema de justiça criminal.