Recentemente a internet tem sido palco de acalorados debates sobre a PEC 3/2022, que acabou recebendo a alcunha popular de PEC das Praias. Criou-se um chamado para todos se manifestarem contra a medida que, supostamente, permitiria a cobrança de uma taxa para mergulhar no mar e o cercamento das praias pelos resorts controlados por grandes grupos estrangeiros.
Viu-se comentários justificando que as praias atualmente pertencem à Marinha do Brasil e manifestações de inconformismo até mesmo com o uso do termo ocupantes.
A discussão tem sido tão intensa que parece transformar o curto texto da PEC 3/2022 em algo maior do que é. Fiz a leitura mais vezes do que de costume para tentar localizar a fonte de tamanho alvoroço e me tranquilizar.
De fato, há pontos que merecem severa crítica, mas a privatização de praias ou de quaisquer outros bens de uso comum não fazem parte da proposta. Então, vale trazer comentários a respeito, sob o ponto de vista jurídico e suportados pela análise do texto no contexto do nosso sistema legal.
Quem já morou, comprou ou vendeu um apartamento na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, provavelmente já se deparou com a cobrança de uma taxa anual denominada foro. Isso significa que o imóvel em questão está localizado em um terreno de marinha (não da Marinha), uma classificação atribuída principalmente conforme a sua distância em relação ao preamar médio do ano de 1831 e que induz à propriedade da União Federal.
Nos casos em que o uso desse imóvel é atribuído a um particular, há um desdobramento do direito de propriedade, mantendo-se o que se chama domínio direto com a União, e transferindo-se o domínio útil ao particular por aforamento, atualmente mediante leilão, um direito real de quase propriedade que vem acompanhado da obrigação de pagamento anual de uma contrapartida à União, o tal foro.
O particular também fica obrigado ao recolhimento do laudêmio sempre que quiser alienar o domínio útil e a obter a prévia aprovação da União, tudo nas regras do conjunto de direitos e obrigações que se denomina regime enfitêutico.
O que a PEC 3/2022 propõe é extinção desse regime transformando automaticamente os titulares de domínio útil em proprietários plenos dos imóveis, mediante uma contrapartida onerosa, em princípio, mediante pagamento de uma contrapartida financeira.
Seria a PEC 3/2022, então, uma novidade? Não, a aquisição do domínio direto por titulares de domínio útil existe desde o início do regime enfitêutico, mas na forma de uma faculdade da União que deve tomar a iniciativa do processo. Há inúmeros casos de remição de foro no Brasil que nunca resultaram em uma restrição de acesso a praias. A PEC 3/2022 propõe uma guinada na forma de extinção dos aforamentos, alterando a faculdade para uma obrigação.
Então o que muda com a praia? Na praia, nada. No nosso exemplo, enquanto os apartamentos são bens de uso privado edificados sobre terrenos que poderão ter a sua propriedade plena adquirida automaticamente com a PEC 3/2022, a praia continuará sendo um bem público de uso comum do povo. Justamente por ostentar essa classificação, em nada será alterada pela PEC 3/2022, e, assim, continuará impassível de apropriação particular, inclusive no que se refere a garantia de acesso a qualquer pessoa.
Essa constatação deve servir para dissolver as preocupações, mas não alivia de críticas a PEC 3/2022. Afinal, o nosso direito não permitiria obrigar alguém a adquirir um bem ou direito, como é o domínio direto, sem que houvesse um ato volitivo dessa pessoa. Pois se até mesmo na doação se exige o aceite do donatário!
É compreensível o interesse em extinguir esse regime. Aliás, a discussão que inundou as redes comprova a difícil apreensão das regras aplicáveis. Mas talvez a ampla política de remição de foro que foi lançada em 2022, dentro da sistemática atual, poderia ter rendido melhores resultados. Ou poderia a PEC 3/2022 oferecer essa solução apenas para as áreas da União ainda não demarcadas, contribuindo para um ganho da segurança jurídica.
No entanto, para que a remição de foro, a extinção do regime enfitêutico ou qualquer outra medida permitisse o uso de praias, mares e ilhas em caráter exclusivo por particulares, além de alterar a Constituição Federal, os artigos 99 da Lei 10.406/2002 (Código Civil) e 10 da Lei 7.661/1998 também deveriam ser alterados. A classificação quanto ao uso dos bens precisaria ser igualmente alterada. E realmente não consigo ler qualquer elemento nesse sentido no texto da PEC 3/2022.
Ademais e ao contrário do que foi noticiado, o termo ocupantes, usado para designar um grupo de pessoas que se beneficiariam da PEC 3/2022 não diz respeito a grileiros ou situações ilegais que teriam agora uma chancela para convalidar uma situação qualquer.
Ocupantes é um termo técnico que não pode ser confundido com o popular como se confundiu e é utilizado para designar os particulares que recebem uma tolerância ou permissão da União para a utilização dos seus imóveis. Esses ocupantes em lugar do foro, pagam a taxa de ocupação e são igualmente responsáveis pelo laudêmio.
Por exemplo, os proprietários de apartamentos que os adquiriram em áreas sujeitas ao regime enfitêutico ainda não demarcadas pela União podem, a qualquer momento, perder esses status e passarem a ocupantes, o que não significa dizer que tenham promovido uma invasão desenfreada em áreas de marinha.
Nos casos de ocupação, as críticas à PEC 3/2022 ecoam aquelas feitas à extinção dos aforamentos, mas pelos mesmos motivos afastam o temor de que amanhã nossas praias estejam repletas de cancelas, filas de ingresso e outras mais.
A realidade, então, permite afirmar que não há discussões em curso que autorizem a cobrança pelo surfe, pelo banho de mar ou uso da areia. Se, por um lado, o pânico possa não ser justificado nesse momento, a celeuma que se instalou deve servir para alertar sobre a iminente necessidade de modernização da disciplina jurídica. É possível apreender das discussões um forte elemento cultural, aliado a uma intenção de proteção patrimonial, que são legítimos e pedem respaldo legal.
Por outro lado, a administração de bens da União utilizados por particulares tem mostrado uma ineficiência marcante que se traduz em uma profunda insegurança jurídica que, de igual forma, legitimamente merece ser pacificada. A PEC 3/2022 se mostrou truculenta para navegar esses extremos, mas é importante que se abra o debate, legítimo, real e técnico, para uma melhor compreensão e aprimoramento da legislação.
No último dia 4, o relator retirou a PEC 3/2022, prometendo voltar com um texto que reflita adequadamente a interação entre as duas classificações de imóveis da União aqui tratadas – quanto à sua geolocalização e quanto ao seu uso – que mantêm, como sempre mantiveram, um constante diálogo. É importante que, além de apaziguar os ânimos, o novo texto sirva para também sanear os pontos de crítica que hoje existem no texto.