No último dia 6 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento de recurso extraordinário versando sobre o direito de pessoas transexuais, transgêneros e travestis a serem reconhecidas pelo gênero com que se identificam (RE 845.779). O tema é caro à função constitucional de Cortes Supremas, há muito reconhecidas em seu papel de proteção de minorias historicamente estigmatizadas.
Não por outra razão, há quase dez anos a maioria da Corte decidiu pela repercussão geral do recurso, cujo julgamento se iniciou em 2015. Suspenso o julgamento, por pedido de vista, transcorreram quase nove anos até que o Supremo finalmente retomasse a pergunta: direitos fundamentais, em sua eficácia horizontal, também valem para pessoas trans?
Ao longo de uma década de espera, as expectativas se ampliaram. Se, por um lado, no julgamento em 2015, a Corte apresentou dificuldade sensível com a questão – basta lembrar que a recorrente, uma mulher trans, fora identificada pelo nome masculino na autuação do processo e, portanto, na legenda da própria TV Justiça –, os anos seguintes veriam ampliar a proteção de pessoas LGBTIA+ no Supremo.
Especificamente quanto às pessoas trans, a decisão tomada na ADI 4.275, ao afirmar a eficácia vertical do direito à identidade, levou a crer que o STF estava pronto para exercer sua função contramajoritária em defesa de quem o ministro Luís Roberto Barroso bem reconheceu ser o grupo social mais vulnerabilizado em nossa sociedade. O julgamento de ontem frustrou estas expectativas.
A despeito da pertinente divergência do ministro presidente, do ministro Edson Fachin e da ministra Carmen Lúcia, o Supremo decidiu não decidir. Contrariando a decisão de dez anos atrás, o Tribunal negou seguimento ao recurso extraordinário, cancelando a repercussão geral que seis ministros haviam reconhecido em 2014 – incluindo o ministro vistor, que após o longo pedido de vista, alterou seu posicionamento para deixar de vislumbrar os requisitos processuais do recurso.
Há múltiplas razões para apontar as imprecisões e equívocos da conclusão do Tribunal[1]. Muitas delas foram devidamente indicadas pela divergência – tão perplexa com a frustração da expectativa de proteger os direitos de pessoas trans quanto os movimentos sociais e advogados de interesse público que acompanhavam a sessão.
Não pretendemos apontar, neste espaço, como cada uma das premissas processuais utilizadas pela Corte não guardam, em realidade, fundamento no caso concreto – algo que, por certo, será objeto de cabíveis embargos de declaração. Neste oportunidade, pretendemos especificamente revisitar o tema do uso da chamada jurisprudência defensiva pelo STF, notadamente quando afeta direitos fundamentais de grupos marginalizados.
A questão não é nova. Ao longo de sua história, o Supremo Tribunal Federal empregou diversos mecanismos para restringir o acesso à Corte. A título de exemplo, atualmente o STF atribui interpretação extensiva ao art. 988, §5º do CPC para restringir o cabimento de reclamação, mesmo em casos em que há risco de perecimento de direito fundamental.
Da mesma forma, o reconhecimento da legitimidade ativa de movimentos sociais organizados para o ajuizamento de ações de controle de constitucionalidade em matéria de direitos fundamentais encontra resistência no tribunal, com fundamento em uma interpretação restritivíssima do art. 103, IX da Constituição.
Uma das principais razões explicitadas para a formulação desta jurisprudência defensiva dizia respeito à necessária limitação do acervo do tribunal, que, do contrário, se tornaria incapaz de julgar as ações e recursos por ele recebidos. Assim, por exemplo, no tema específico da jurisdição constitucional, o controle difuso viu sedimentadas limitações processuais aos recursos extraordinários (como os enunciados 279, 283, 284, 356, 454 da Súmula da Corte); enquanto o controle concentrado viu limitada sua promessa de expansão, como pela mencionada interpretação do rol de legitimados ativos.
O fato é, contudo, que as estatísticas divulgadas pelo próprio STF põem em xeque a tese de que a Corte possui um acervo impraticável. Desde a expansão do plenário virtual, a partir de 2020, o acervo do Supremo viu-se substancialmente reduzido – contando, hoje, com aproximadamente 22 mil processos. Apenas para fins de comparação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que apresenta número três vezes maior de ministros, possuía, em abril de 2024, um acervo quinze vezes maior (337.865 processos).
Razões pragmáticas para não decidir, portanto, deixaram de existir. Se o tribunal não julga por razões puramente formais – e se não julga mesmo um recurso que já tomou o disputado espaço na agenda do plenário presencial – não é por assoberbamento de trabalho. É porque opta por não julgar.
É nesse sentido que se coloca a seguinte questão: é possível conciliar a função do STF de proteger grupos vulneráveis com o emprego de razões puramente processuais para deixar de decidir? A resposta é negativa. Superar uma jurisprudência defensiva que não encontra mais justificativa em razões pragmáticas é, em realidade, a condição essencial para que o Supremo exerça sua finalidade legitimadora como Corte Constitucional – qual seja, a proteção de minorias historicamente marginalizadas. Usar desta jurisprudência defensiva como escudo para preservar o status quo – no caso, um status quo de discriminação crescente e permanente contra grupos profundamente marginalizados – é atrair descrença e desconfiança sobre a atuação da Corte.
É preciso lembrar, ainda, que o julgamento do último dia 6 não vem sem profundos custos políticos, sociais e econômicos. Basta pensar na perspectiva do acesso à Corte, que já é custoso para grupos de interesse em geral, o sendo ainda mais para minorias estigmatizadas.
No controle concentrado, chegar ao STF depende de se superar as barreiras jurídicas impostas pelo próprio Supremo aos chamados legitimados “especiais” ou as barreiras políticas em razão das quais legitimados “universais” deixam para o fim de suas listas de prioridades o ajuizamento de demandas em favor de minorias estigmatizadas.
No controle difuso, dependerá do percurso demorado e extremamente custoso pelas vias recursais ordinárias e extraordinárias. Há despesas econômicas e pessoais para as partes, há custos igualmente econômicos e sociais para toda a população que aguarda o dia de ser finalmente ouvida pela Corte.
O fato é que, no RE 845.779, o percurso foi efetivamente percorrido. A maratona chegava quase ao fim. Ao custo da discriminação contra a recorrente, da exposição de seu nome de registro em rede nacional, da espera por mais de 10 anos para encontrar um desfecho no tribunal. Ao custo de ser reiteradamente chamada de “autor” – no masculino, em 2015 e em 2024 – a despeito das insistentes correções pelo ministro relator. Ao custo de tudo isso, as pessoas transexuais estavam prestes a cruzar a linha de chegada. E, repentinamente, a linha de chegada foi mudada de lugar.
Hoje não. Quem sabe amanhã? Quem sabe em uma ADPF? Quem sabe em outro recurso, que preencha requisitos que nunca foram exigidos e que nunca deveriam impedir a proteção urgente de direitos fundamentais?
Quem sabe depois de mais uma mulher trans ser assassinada após sair de uma festa. Quem sabe depois de mais uma mulher trans ser morte a golpes de faca na própria casa. Quem sabe depois de mais uma mulher trans ser vítima de estupro coletivo na saída de uma tabacaria. Quem sabe, aí então, o Supremo estará convencido novamente – como esteve convencido em 2014 – de que é preciso agir, sem usar do processo para se defender de seu dever.
[1] A título de exemplo, foram ventiladas, como justificativa para o cancelamento da afetação, ausência de prequestionamento, natureza infraconstitucional da discussão e necessidade de reexame de fatos e provas, o que revela confusão entre questões processuais totalmente distintas, pois os óbices jurisprudenciais não se confundem com a repercussão social da controvérsia.