A promulgação da Emenda Constitucional 132/2023 que altera o sistema tributário brasileiro trouxe a promessa de simplificar um dos sistemas mais complexos do mundo. No entanto, a realidade do contencioso tributário sugere que a simplificação pode não ser tão direta quanto esperado. A reforma introduziu uma fiscalização compartilhada entre o Comitê Gestor dos Tributos da União e a Receita Federal, uma abordagem que deveria, em teoria, reduzir conflitos e sobreposições na aplicação dos tributos.
A reforma tributária introduziu no sistema brasileiro a figura do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), ambos com o mesmo fato gerador, mas sujeitos a regimes de fiscalização e cobrança distintos. O IBS será administrado por um comitê gestor, cuja jurisdição e competência ainda não estão claramente definidas, enquanto a CBS continuará sob a alçada da Receita Federal, com competência de litígios atribuída à Justiça Federal. Essa divisão suscita importantes questionamentos sobre a segurança jurídica oferecida por tal estrutura.
Este artigo analisa como esse novo modelo de fiscalização afeta o contencioso tributário do IBS e CBS (tributos gêmeos) e se ele efetivamente contribui para um sistema mais equitativo e menos complexo.
Como bem observou o professor Carlos Alexandre da UERJ, em seu livro Complexidade Tributária[1], não se pode negar a necessidade de reduzir a complexidade do nosso sistema tributário. A excessiva complexidade compromete a equidade do sistema. Contudo, a crítica levantada pelo professor aponta que a simplificação, embora dominante nas discussões sobre reforma tributária, pode se revelar uma verdadeira “armadilha retórica”.
O foco quase exclusivo na simplificação pode, paradoxalmente, desviar a atenção de outros defeitos graves do sistema, mantendo ou até exacerbando as dificuldades já existentes para os contribuintes e para o próprio sistema de justiça.
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre como essa reforma, embora destinada a simplificar, enfrenta desafios significativos no contencioso tributário. A dualidade de entidades fiscalizadoras, em teoria, visa a eficiência e uniformidade na aplicação das leis tributárias. Porém, na prática, pode gerar novas complexidades e desafios para os contribuintes, administração pública e judiciário. Esta análise explora as implicações dessa fiscalização compartilhada e discute se realmente estamos avançando em direção a um sistema mais justo e menos complicado, ou se estamos apenas redirecionando a complexidade para o contencioso tributário.
Ao modificar a tributação sobre o consumo, a recente reforma tributária buscou incorporar na Constituição Federal de 1988 princípios fundamentais que orientam a aplicação e a gestão dos tributos. Princípios como “da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente” foram explicitamente estabelecidos com o objetivo de reformular o panorama fiscal do país.
Essa inclusão constitucional visa não apenas aprimorar a eficiência na arrecadação tributária, mas também assegurar que a tributação contribua de forma mais significativa para a promoção da equidade social e para a sustentabilidade ambiental. No entanto, a implementação desses princípios no cotidiano fiscal e jurídico apresenta desafios consideráveis. A necessidade de equilibrar esses ideais com a realidade prática da fiscalização tributária compartilhada requer uma análise criteriosa de como essas normas estão sendo aplicadas e se estão, de fato, conduzindo a um sistema tributário mais justo e transparente.
Ao considerar apenas elementos individuais do sistema tributário, como as regras de incidência, imunidades, regimes de tributação, regras de não cumulatividade e creditamento, pode-se perder de vista a necessidade de uniformidade em todo o sistema. Isso é especialmente relevante no que tange ao procedimento para o contencioso tanto administrativo quanto judicial.
A existência de dois tributos (imposto e contribuição) com o mesmo fato gerador, mas submetidos a processos de cobrança e contencioso distintos, gera uma complexidade adicional e pode levar a interpretações e decisões divergentes sobre questões similares ou mesmo idênticas. Essa falta de uniformidade não só complica a vida dos contribuintes, como também desafia o princípio da simplicidade e da transparência que a reforma busca promover. Resta a dúvida: como assegurar que a implementação do IBS e da CBS contribuirá efetivamente para um sistema tributário equitativo e coeso?
Muitos doutrinadores têm defendido que a EC 132/23, ao abordar a “integração” dos tributos IBS e CBS no contencioso tributário, realmente propõe uma unificação normativa essencial para harmonizar as disputas entre o fisco e os contribuintes. Esta abordagem refletiria um esforço jurídico de longa data para superar a fragmentação das normas tributárias existentes, visando criar um ambiente mais coerente e transparente para a resolução de conflitos.
Além disso, defende essa corrente que a introdução do princípio da simplicidade pela EC e a permissão para a integração do contencioso administrativo especialmente desses dois tributos oferecem ao legislador a possibilidade de eliminar, de uma vez por todas, a complexidade do sistema atual, que é caracterizado por uma infinidade de normas e regimentos internos próprios dos tribunais administrativos que regem a tramitação dos processos tributários.
No entanto, antes de considerar estas mudanças como uma solução definitiva, é fundamental entender que ainda não se discutiu adequadamente quais são os conceitos exatos de “simplicidade” e “complexidade” dentro deste contexto. Estes termos parecem permanecer indeterminados, o que pode levar a diferentes interpretações e implementações, conforme será explorado na sequência deste artigo. A falta de uma definição clara desses conceitos essenciais pode, paradoxalmente, resultar em novas complicações, contradizendo os objetivos declarados da reforma.
Para esta autora que vos fala, a complexidade tributária pode ser caracterizada pela potencial divergência de decisões tanto no âmbito administrativo quanto judicial, especialmente no tratamento de tributos gêmeos, como o IBS e a CBS. É concebível, por exemplo, que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) emita decisões que divergem das determinações do Comitê Gestor, ainda que ambos baseiem suas análises nos mesmos pressupostos jurídicos. Similarmente, no âmbito judicial, a justiça estadual (IBS) — caso seja essa definida como competente — poderia proferir decisões que não alinham com as proferidas pela Justiça Federal (CBS).
Neste contexto, a instituição da câmara técnica uniformização prevista no PLP 37/2024[2] em seu artigo 21 poderia desempenhar um papel fundamental, assumindo a competência para uniformizar decisões que ensejem conflitos interpretativos entre os dos tributos. No entanto, esta prerrogativa permitiria que tal câmara estabelecesse precedentes obrigatórios, garantindo assim a coerência e a uniformidade nas decisões administrativas em matéria tributária? Se as decisões da câmara técnica de uniformização não forem expressamente vinculativas, qual seria então sua função efetiva no sistema tributário, senão meramente retórica e potencialmente custosa aos cofres públicos?
A efetiva implementação de um mecanismo vinculante por parte desta câmara técnica de uniformização é necessária para a redução de litígios e para a promoção de uma maior previsibilidade e estabilidade no contencioso administrativo, assegurando a aplicação equânime das leis em todo o território nacional.
Para concluir, a promulgação da EC 132/2023, que visava simplificar trouxe consigo a promessa de um regime fiscal mais ágil e menos conflituoso. No entanto, a realidade se mostrou menos direta, introduzindo desafios no contencioso tributário, tanto judicial quanto administrativo. A divisão de fiscalização entre o Comitê Gestor dos Tributos da União e a Receita Federal, teoricamente uma estratégia para minimizar sobreposições e conflitos, na prática, levanta questões relevantes sobre a segurança jurídica desse arranjo.
Este breve artigo buscou examinar as implicações de se ter o IBS e a CBS com o mesmo fato gerador, mas regulados por entidades distintas. Observa-se que, apesar dos nobres princípios incorporados na Constituição Federal, como simplicidade e transparência, a implementação desses princípios enfrenta barreiras significativas. As divergências entre decisões administrativas e judiciais, potencialmente exacerbadas por esta dualidade de comando, ameaçam a uniformidade e a eficácia da reforma.
Em conclusão, enquanto a EC 132/2023 representa um passo em direção à simplificação do sistema tributário, a complexidade inerente às mudanças e a falta de uma discussão mais aprofundada sobre os conceitos de simplicidade e complexidade poderiam paradoxalmente conduzir a um sistema ainda mais desafiador. Portanto, é necessário que futuras Lei Complementares ou ajustes legislativos abordem essas questões com maior profundidade e clareza, garantindo que a simplificação prometida não se transforme em uma nova fonte de complexidade.
Este tema foi discutido durante o aulão solidário que aconteceu em 7 de maio, quando diversos professores de Direito Tributário se reuniram para apoiar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. O debate sobre o assunto se estendeu por mais de cinco horas.
[1] CAMPOS, Carlos Alexandre Azevedo. Um esboço da teoria da complexidade tributária. In: CAMPOS, Carlos Alexandre (Coord.). Complexidade tributária: teoria e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Anagrama, 2022. p. 23-24.
[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar nº 37/2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2423655&fichaAmigavel=nao. Acesso em: 21 maio 2024.