Primeiras impressões acerca do novo artigo 17-A da Lei Maria da Penha

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Sancionada no dia 21 de maio deste ano, mas ainda em vacatio legis, a Lei 14.857/2024 introduziu na Lei Maria da Penha o artigo 17-A, dispositivo que prevê um novo parâmetro a ser adotado pelo sistema de Justiça Criminal: o sigilo do nome da ofendida nos processos em que se apuram crimes praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher[1].

A despeito da diferença entre conceitos de sigilo e segredo de justiça, o Parlamento brasileiro optou novamente por relativizar a regra da publicidade no acesso aos dados e informações processuais, tal como ocorre em feitos envolvendo infrações penais específicas, notadamente os crimes sexuais contra vulneráveis[2].

A opção do legislador em alterar a Lei Maria da Penha foi mencionada em diversas oportunidades[3]: prevenir a consumação de episódios revitimizantes às mulheres vítimas de violência doméstica. A superveniência desta nova hipótese legal de sigilo, contudo, parece vir acompanhada de diversos pontos a serem debatidos. Proponho neste texto inicial acerca do assunto, o enfrentamento de três: alcance do sigilo, natureza do sigilo e forma de garanti-lo. Vejamos.

Alcance do sigilo

A técnica legislativa empregada pelo legislador ao redigir o novo artigo 17-A da Lei Maria da Penha é taxativa: o sigilo automático recai – conforme já dito na introdução deste texto – somente sobre o nome da mulher vítima de violência doméstica. Em relação a este ponto, a positivação da nova hipótese de sigilo afasta a discricionariedade do magistrado na aplicação do artigo 201, §6º do Código de Processo Penal: “O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação”.

Ainda sendo possível, contudo, a sua aplicação aos demais dados do processo, uma vez que o parágrafo único do art. 17-A é categórico: “O sigilo referido no caput deste artigo não abrange o nome do autor do fato, tampouco os demais dados do processo”.

Em síntese: torna-se automático o sigilo do nome da mulher vítima de violência doméstica por força do art. 17-A da LMP, porém persiste a possibilidade do magistrado estender o sigilo aos demais dados do processo ou até mesmo decretar o segredo de justiça, nos termos do mencionado dispositivo do Código de Processo Penal, caso sejam medidas necessárias para maximizar os direitos fundamentais da ofendida.

Neste aspecto, a norma parece vir ao encontro de preocupação já demonstrada por este autor aqui no JOTA, quando da análise da importância da proteção de dados pessoais de mulheres vítimas de violência doméstica em território brasileiro.[4]

Outro ponto a ser destacado em relação ao alcance da norma diz respeito a expressão “crimes” empregada pelo caput do art. 17-A. Parece-nos que, a despeito do legislador tê-la utilizado, uma interpretação teleológica da norma também nos leva à sua aplicação às contravenções penais cometidas em contexto de violência doméstica e familiar. O raciocínio já foi empregado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em situação idêntica, quando da análise da aplicação do art. 41 da Lei Maria da Penha. Na oportunidade, a Corte considerou interpretar “crimes” como “infrações penais” para fins de vedação da incidência da Lei 9.099/95.[5]

Natureza do sigilo: sigilo automático versus sigilo compulsório

A compreensão acerca da natureza do sigilo disciplinado pelo artigo 17-A da Lei 11.340/2006 é ponto crucial a ser discutido para fins de sua aplicação prática, especialmente diante da crítica realizada ao então projeto de lei que deu origem ao novo artigo 17-A da Lei Maria da Penha. Trata-se do argumento segundo o qual, em determinadas situações, a publicidade é utilizada como uma forma de proteção à mulher em situação de violência doméstica.[6]

A observação é pertinente e condiz com a realidade. De fato, não se ignora que, em situações específicas, a publicidade em sua plenitude poderá inibir a prática de novos atos de violência doméstica e familiar contra a ofendida. A controvérsia neste ponto, no entanto, parece ser resolvida mediante a diferenciação dos conceitos de sigilo automático e sigilo obrigatório, e a partir daí, respondermos a seguinte indagação: a vítima pode renunciar o sigilo contido no artigo 17-A da Lei Maria da Penha?

Se compreendido como obrigatório (ou compulsório), o sigilo imposto pelo artigo 17-A será impassível de renúncia por parte da mulher vítima de violência doméstica. Não nos afigura, contudo, ser esta a melhor posição. De início, este articulista lembra aos leitores que a Lei 11.340/2006 prevê em seu artigo 4º, um balizador hermenêutico para as demais normas contidas em seu corpo legal: “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.

Nesta linha de raciocínio, o intérprete deve se atentar ao fato de que a hipótese de sigilo trazida pelo novel artigo 17-A diz respeito estritamente ao nome da mulher vítima de violência doméstica e familiar, tendo sido idealizada pelo legislador com o objetivo de protegê-la, levando consideração sua situação de vulnerabilidade.

Logo, franquear à vítima a possibilidade de renunciar o sigilo acerca de um dado personalíssimo (seu nome) significa, a um só tempo, concretizar por via transversa a intenção do legislador quando da edição do artigo 17-A da LMP, e ainda interpretá-lo à luz do mencionado artigo 4º do mesmo diploma legal.

O sigilo disposto no artigo 17-A da Lei Maria da Penha deve, portanto, ser compreendido como automático, porém não obrigatório. A deflagração da persecução penal levará consigo a aplicação do sigilo de forma automática, podendo a vítima – se maior e capaz – renunciá-lo se assim desejar.

Garantindo a aplicação: o emprego das iniciais da vítima nos atos processuais

A densificação do artigo 17-A da Lei Maria da Penha traz consigo um consectário lógico: o emprego das iniciais da mulher vítima de violência doméstica no bojo dos atos processuais (v.g., denúncia, manifestações, alegações finais, provimentos judiciais de qualquer natureza, etc.).

Trata-se, na opinião deste autor, da forma mais adequada de efetivação da nova hipótese de sigilo incorporada pela Lei 11.340/2006, uma vez que, conforme já explanado em tópico anterior, o sigilo recairá – ao menos se aplicado o art. 17-A de forma isolada – apenas sobre o nome da vítima.

Assim, a adoção deste iter procedimental quando da menção da ofendida durante o processo é medida que se impõe a todos os sujeitos processuais envolvidos (v.g., Ministério Público, advogado de defesa e representante do Poder Judiciário), sob pena de transgressão do próprio art. 17-A da Lei Maria da Penha.

É esta, aliás, a postura a ser adotada segundo orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quando da edição da Recomendação nº 52/2016. No art. 1º do referido ato normativo, o CNJ recomenda aos tribunais “a adoção de medidas preventivas e maior rigor no controle quanto à forma como são geradas, armazenadas e disponibilizadas informações judiciais de caráter sigiloso e/ou sensíveis, sobretudo quando envolvam vítimas de crimes praticados contra a dignidade sexual”.

Dois aspectos do mencionado artigo parecem ser de suma importância para fins da abordagem proposta neste texto: a) segundo o Conselho Nacional de Justiça, a Recomendação n 52/2016 incidirá sobre “informações de caráter sigiloso” – exatamente conforme preconiza o artigo 17-A da Lei Maria da Penha – e; b) embora o art. 1º da Recomendação CNJ nº 52/2016 tenha feito menção expressa aos crimes praticados contra a dignidade sexual, o órgão o fez utilizando a vocábulo “sobretudo”, não excluindo a sua extensão para vítimas de outras infrações penais.

Superada eventual objeção à aplicação da Recomendação nº 52/2016 do Conselho Nacional de Justiça aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o parágrafo único do mencionado dispositivo é categórico: “Os nomes das vítimas constantes dos bancos de dados, quando necessários à identificação, deverão cingir-se à indicação das iniciais dos nomes e sobrenomes de família, mormente quando se tratarem de crimes sexuais praticados contra vulnerável”.

Novamente, o CNJ menciona os crimes sexuais, porém – e somente – após a utilização da expressão “mormente”, não excluindo, portanto, a incidência da recomendação administrativa aos casos ocorridos em contexto de violência doméstica e familiar.

Parece-nos claro que a Recomendação nº 52/2016 do Conselho Nacional de Justiça almejava – ao menos à época em que fora editada – atingir um ponto específico do sistema de Justiça Criminal: a preservação dos direitos das vítimas vulneráveis de crimes sexuais, especialmente crianças e adolescentes.

Com a superveniência de nova hipótese legal de sigilo contida no artigo 17-A da Lei Maria da Penha, o ato emanado pelo Conselho Nacional de Justiça também deverá ser observado na persecução penal envolvendo crimes e contravenções praticados em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Uma segunda alternativa para dar concretude ao disposto no artigo 17-A seria a adoção de um procedimento de “desidentificação da vítima”, mencionando-a ao longo do processo como “a vítima” ou “vítima-A” e “vítima B”, etc. Embora apta a atingir o ethos da nova hipótese de sigilo contida na Lei Maria da Penha, esta solução parece ser não usual, ou ao menos desprovida de maleabilidade prática quando comparada com o caminho sugerido anteriormente (o emprego das iniciais da vítima).

Desta forma, e a partir do exemplo exitoso envolvendo a preservação de direitos de crianças e adolescentes vítimas de infrações penais, este autor enxerga o emprego das iniciais da ofendida como a melhor forma de preservação do sigilo disposto no artigo 17-A da Lei Maria da Penha.

Outras discussões devem surgir após a entrada em vigor da lei.

Espero que tenham gostado. Até a próxima!

[1] Art. 17-A da Lei Maria da Penha: “O nome da ofendida ficará sob sigilo nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher”.

[2] Art. 234-B do Código Penal: “Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça.”

[3] Câmara dos Deputados. Nova lei assegura sigilo do nome da vítima em casos de violência doméstica e familiar. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1065003-nova-lei-assegura-sigilo-do-nome-da-vitima-em-casos-de-violencia-domestica-e-familiar/. Acesso em: 03 jun. 2024.  No mesmo sentido: Governo Federal, Ministério das Mulheres. Presidente sanciona lei que assegura sigilo do nome da vítima em casos de violência doméstica e familiar. Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2024/maio/presidente-sanciona-lei-que-assegura-sigilo-do-nome-da-vitima-em-casos-de-violencia-domestica-e-familiar Acesso em: 03 jun. 2024.

[4] HEEMANN, Thimotie Aragon. Combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e proteção de dados pessoais. JOTA, 08 jan. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/combate-a-violencia-domestica-contra-a-mulher-e-protecao-de-dados-pessoais-08012024?non-beta=1. Acesso em: 03 jun. 2024.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 102.571/MG. Rel. Min. Jorge Mussi, Terceira Seção, j. 13/05/2009.

[6]CONSÓRCIO LEI MARIA DA PENHA. Nota Técnica ao Projeto de Lei 1822/2019. Disponível em: https://www.consorcioleimariadapenha.org.br/publicacoes/notas-3/. Acesso em: 03 jun. 2024.