De desavenças virtuais entre celebridades a debates jurídicos e interdisciplinares sobre o tema, é certo que a PEC 3/2022 tem suscitado discussões relacionadas às questões ambientais, sociais e econômicas decorrentes da alteração do texto constitucional. Entre elas, a que ganhou maior destaque, até o momento, consiste na possibilidade de privatização de praias.
Em linhas gerais, a PEC 3/22 tem como escopo transferir o domínio de determinadas áreas definidas como terrenos de marinha, que pertencem atualmente à União, aos estados, municípios, foreiros, ocupantes regularmente inscritos nos órgãos de gestão de patrimônio da União, bem como ocupantes não inscritos, desde que cumpridos certos requisitos.
Por definição legal, são terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio de 1831 os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés, e aqueles que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.
Sabe-se que os terrenos de marinha estão submetidos à enfiteuse, instituto em franca decadência no ordenamento jurídico pátrio desde o advento do Código Civil de 2002. A própria Constituição Federal previu, no artigo 49 de seu ADCT, a possibilidade de extinção das enfiteuses em imóveis urbanos, mediante aquisição do domínio direto.
A toda evidência, permitir a transferência de domínio de determinados terrenos de marinha aos entes públicos e particulares ocupantes da respectiva área materializa a extinção das enfiteuses sobre tais espaços territoriais, o que está em consonância com as alterações legislativas sobre o tema. Nesta medida, a PEC 3/22 visa apenas alterar a titularidade dos referidos espaços territoriais, o que em nada modifica o regramento ambiental e urbanístico que naturalmente já incide sobre tais áreas.
Nesta lógica, independentemente da titularidade pública ou privada, é certo que todo arcabouço legislativo ambiental permanecerá incidindo. Justamente por isso, estados, municípios e demais particulares deverão observar o regime de proteção da área de preservação permanente, previstas na Lei 12.651/2012, além das unidades de conservação, abrangidas pela Lei 9.985/2000.
Da mesma forma, subsistirá a Lei 9.605/1998, que prevê os crimes ambientais e as respectivas penas. É dizer, a extinção da enfiteuse sobre os terrenos de marinha em nada altera as normas ambientais vigentes – que já eram de observância obrigatória pelo enfiteuta e assim permanecerão independentemente da transferência de seu domínio – seja qual for o direito real instituído sobre a propriedade.
Sob a perspectiva social, um dos contrapontos à PEC 3/22 parte da premissa de que a alteração facilitará o movimento de privatização de praias. O argumento, no entanto, desconsidera a existência de leis que dispõem sobre o direito urbanístico, o que compreende a Lei 10.257/2001, além das normativas dos municípios, que tratam sobre o adequado ordenamento territorial e ocupação do solo urbano. Nesta medida, considerando que a proposta versa sobre terrenos que já são ocupados e utilizados pelo Poder Público estadual, municipal e particulares, estes já estão sujeitos às limitações legais ao direito de construir.
Especificamente em relação às praias, não parece verossímil a hipótese de cerceamento de seu acesso pela população. Em primeiro lugar, os mares são classificados como bens públicos de uso comum do povo, e nesta qualidade, não são passíveis de alienação ou usucapião – isto é, sua titularidade é do Poder Público e não do público (ou do particular). Além disso, há princípios e regras previstos na Constituição Federal que representam verdadeiras barreiras ao fechamento de praias, tais como a inviolabilidade do direito à liberdade, à igualdade, à livre locomoção no território nacional, à função social da propriedade.
Ainda sob o enfoque social, merece destaque a disposição contida no artigo 1º, §1º, inciso I, da PEC, que prevê a possibilidade de transferência gratuita de áreas ocupadas por habitação de interesse social. E não é só: a proposta também parece criar outra modalidade de usucapião, nos termos do artigo 1º, inciso IV. Tais dispositivos materializam a dignidade da pessoa humana, na medida em que o direito fundamental à moradia é assegurado, de modo a minimizar questionamentos a respeito da ocupação pela população ribeirinha.
Em termos econômicos, a PEC 3/22 pode representar, ainda, a entrada imediata de consideráveis recursos financeiros à União, diante da transferência onerosa de domínio pleno dos terrenos de marinha aos foreiros e demais ocupantes, na forma aventada na proposta. Anualmente, a União recebe a título de foro, apenas o percentual de 0,6% sobre o valor do domínio pleno do terreno; e, eventualmente, em caso de transferência de domínio útil do imóvel, 5% sobre o valor da transação ou sobre o que tiver sido estimado pelo domínio da União.
De lado as elucubrações, a PEC 3/22 tem o potencial de assegurar aos particulares o domínio integral dos imóveis situados em terrenos de marinha e garantir a entrada de recursos financeiros significativos aos cofres federais. Quanto à possibilidade de privatização das praias, como demonstrado, será necessário ultrapassar muito além dos 33 metros de profundidade legislativa.