Eis que um conjunto significativo de mudanças ao jovem Código Civil se apresenta ao Senado. A opção foi pela terapia invasiva, daquelas que exigem anestesia geral, como se o paciente estivesse em perigo. Dos 176 capítulos do Código, consta que somente 27 teriam passado ilesos. Na prática, trata-se de um novo Código. Duas indagações se impõem. A empreitada era necessária e conveniente? Quais são as consequências da aprovação de um projeto de lei que encampe essa proposta?
Um novo Código Civil significa a consagração de um paradigma cultural, como observou Miguel Reale. Sua criação se justifica quando as mudanças da sociedade se acentuam de tal maneira que a lei vigente se torna obsoleta, incapaz de oferecer resposta normativa condizente com os valores que regem a vida civil, incluídos os aspectos econômicos, os costumes, as liberdades e a convivência coletiva.
Foi o que ocorreu com a passagem do Código de 1916, quando o Brasil era um país predominantemente rural, pobre, atado a padrões de costumes do século 19 e juridicamente positivista, para o Código de 2002, adaptado a um Brasil urbano, integrado comercialmente ao mundo, já uma das maiores economias do globo, e que se pretendia juridicamente principiológico e aberto.
Houve mudança dessa natureza entre 2002 e os dias atuais? O paradigma ético de então se esvaiu, fazendo com que o Código vigente perdesse o viço e necrosasse, a ponto de justificar a criação de um novo? E se estivéssemos diante de um Código débil, complemente ultrapassado, um novo poderia ser gestado em menos de um ano e mesmo assim refletir com fidedignidade os novos consensos vigentes na vida civil? Nada indica que as respostas a essas três indagações sejam positivas.
A grande mudança experimentada nesse intervalo de tempo ocorreu no plano tecnológico, na forma como as pessoas se comunicam, acessam o conhecimento e fazem trocas. Contudo, existem no próprio Código e sobretudo em leis editadas posteriormente, com destaque para o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Danos, normas para lidar com essa nova realidade. E se estas, ou também as que dizem respeito a pauta de costumes, exigissem atualização, lá estavam a jurisprudência e a doutrina para preservar-lhes a eficácia, sem grandes sobressaltos, como deve ser a experiência jurídica. Portanto, não parece que a proposta de um novo Código passe pelo teste da necessidade.
No plano da conveniência, tampouco. Tome-se o exemplo das alterações propostas no Título da responsabilidade civil, uma área do Código que não sofre de qualquer anacronismo. Ao contrário, ela ainda exibe o vigor jovial das mudanças introduzidas em 2002, com destaque para o regime da responsabilidade objetiva pela atividade de risco (art. 927, par. único), cujo sentido a jurisprudência vem delimitando em um lento processo de interpretação do texto.
Ao contrário do texto em vigor, que exibe fluidez semântica, coerência conceitual e delimitação de sentido, deixando claro que o dever de indenizar se circunscreve ao dano causado pela natureza de risco da atividade, o art. 927-B do anteprojeto propõe um texto oblíquo, pródigo no emprego de conceitos indeterminados, e cuja leitura permite a responsabilização civil por qualquer atividade lícita que não importe risco inerente.
Se esse era o objetivo da norma, a consequência será uma era socialmente caótica de responsabilização ilimitada, independentemente do (fundamental) parâmetro de licitude. Se o não era esse o objetivo, então convém eliminar o dispositivo proposto, inserido em contexto no qual “grassam a imprecisão e a contradição”, conforme advertiu a professora Judith Martins-Costa.
Ainda no plano da inconveniência, e atendo-se ao capítulo da responsabilidade civil, tem-se a indenizabilidade do dano. Embora tenha preservado a regra geral segundo a qual a indenização mede-se pela extensão do dano – o que assegura a justa reparação sem gerar enriquecimento da vítima – o anteprojeto criou regras contraditórias e de difícil compreensão.
Um exemplo é a possibilidade de escolha, pela vítima, de indenização que importe “remoção dos lucros […] auferidos pelo lesante em conexão com a prática do ilícito”. Não só o conceito de remoção de lucros é obscuro, como parece impertinente relacionar lucro do agente com dano da vítima, sobretudo se o próprio anteprojeto acertadamente optou pela manutenção da regra que atrela a indenização ao dano, a despeito de quem o cause.
Caso haja consenso generalizado na sociedade sobre a necessidade de reforma estrutural do Código Civil tal como a proposta – o que não parece ser o caso –, há de se debater o texto do anteprojeto com profundidade, sob o primado da técnica, sem açodamento, de modo a lhe corrigir o prumo e evitar retrocessos que se materializarão caso a proposta seja aprovada como se apresenta.