A tributação sobre consumo sob a ótica dos novos princípios constitucionais

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O atual sistema tributário brasileiro, criado com o objetivo de descentralizar o poder e garantir autonomia aos entes federativos, acabou por criar um emaranhado de normas e obrigações acessórias que tornam o cumprimento das obrigações tributárias uma tarefa hercúlea. A carga tributária elevada, aliada à multiplicidade de tributos e à falta de harmonização entre as esferas federal, estadual e municipal, resulta em um sistema que onera excessivamente as empresas e os cidadãos, promove a desigualdade e a informalidade na economia, além de criar um grande contencioso administrativo e judicial.

Ao longo de décadas, o Brasil experimentou diversas tentativas de reforma tributária para implementação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), mas muitas dessas iniciativas esbarraram em desafios políticos e técnicos, sustentados por uma visão de que eventual reforma iria na contramão de balizas constitucionais que não poderiam ser alteradas, a exemplo da autonomia dos entes federativos.

Contudo, a Constituição não deve ser vista como um elemento instransponível que torna o sistema tributário imutável, mas, sim, como um instrumento sujeito à reavaliação e mudança sempre que necessário, conforme explorado no texto “No sistema tributário, a Constituição é um navio, não uma âncora”[1].

A Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003, ao inserir o artigo 52, inciso XV, no texto constitucional, atribuiu ao Senado a competência para “avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios”. Em outras palavras, foi conferida ao legislador a possibilidade de rever e imprimir nova característica ao sistema tributário e suas funcionalidades.

É nesse contexto que deve ser interpretada a reforma tributária sobre o consumo trazida pela EC 132, de 20/12/2023. Longe de ameaçar a autonomia dos entes federativos que foi conferida pela Constituição de 1988, como já foi defendido por alguns, o que se verifica é uma amplitude da competência de todos os entes federativos, que passarão a tributar todas as operações que envolvam consumo de bens, serviços e direitos, algo que antes não era possível em razão do engessamento de competências tributárias de cada ente separadamente.

Mais do que isso, a implementação da CBS e do IBS no Brasil trouxe consigo a necessidade de introduzir e compreender profundamente os princípios do destino, da transparência e neutralidade no novo sistema tributário brasileiro, mudando seus aspectos fundamentais para que os tributos sejam recolhidos no local de consumo dos bens, serviços e direitos (destino), bem como que seja dada visibilidade da carga tributária ao consumidor final, ou seja, o cidadão que paga os tributos e participa do processo eleitoral (transparência), além de evitar distorções nas decisões de consumo e de organização das atividades empresariais (neutralidade).

De forma resumida, saímos de um sistema no qual a tributação se concentra nas pessoas jurídicas e no local onde estão estabelecidas para um sistema cujo foco é a pessoa física na condição de consumidora final de produtos e serviços. Essa mudança de foco traz, ainda, o benefício de democratizar a distribuição do produto de arrecadação dos tributos entre os entes federativos. Esse sistema, entretanto, somente funciona se for efetivamente transparente e neutro, garantindo, ainda, a justiça fiscal, outro princípio constitucional trazido pela reforma tributária.

A transparência assegura que o cidadão compreenda claramente quanto paga de tributo em cada produto ou serviço, promovendo maior conscientização e controle social sobre a carga tributária, o que empodera o cidadão no debate eleitoral sobre a definição das alíquotas e da carga tributária sobre o consumo[2]. Prova desse controle social, aliás, está nos amplos debates e notícias veiculadas sobre o percentual da carga tributária dos novos tributos (CBS e IBS)[3], demonstrando que o sistema já trouxe, desde a sua concepção, resultados positivos.

Em um sistema neutro, por sua vez, os tributos não influenciam a escolha do consumidor nem distorcem a competitividade entre as empresas[4], permitindo que as decisões econômicas sejam guiadas por critérios de eficiência e não por incentivos fiscais desproporcionais.

Além disso, a justiça fiscal é um princípio essencial para a reforma tributária, garantindo que a distribuição da carga tributária seja equitativa e que contribua para a redução das desigualdades sociais. A nova estrutura busca equilibrar a contribuição de todos os cidadãos e empresas de acordo com sua capacidade econômica, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária, sem comprometer a autonomia dos entes federativos.

Vale dizer que o fato de esses novos princípios terem sido previstos de forma explícita na Constituição faz com que exista um comando claro para que todos os intérpretes observem esses princípios listados. Quando os princípios são implícitos, eles são deduzidos do ordenamento jurídico, exigindo um esforço hermenêutico significativo e um ônus argumentativo para justificar sua aplicação prática. No entanto, quando os princípios estão explícitos no ordenamento jurídico positivo, essa dedução não é mais necessária, pois eles já estão concretamente presentes no sistema[5].

Disso decorre, justamente, a necessidade de compreender os princípios estabelecidos no novo sistema tributário nacional para que se possa efetuar uma leitura correta das normas que irão regulamentar esse novo sistema. Isso exige que os intérpretes, legisladores, aplicadores do direito e todos os operadores jurídicos os considerem como fundamentais e obrigatórios na construção, interpretação e aplicação das normas tributárias.

Ao assim fazer, é possível garantir que a regulamentação do sistema tributário seja coerente com os valores e objetivos constitucionais, assegurando a eficiência das normas ao evitar interpretações e aplicações distorcidas que poderiam comprometer a eficácia do sistema e a própria segurança jurídica, potencialmente causando um volume indesejável de contencioso, como que se verifica atualmente.

Em suma, ao incorporar os princípios do destino, da transparência e da neutralidade, além da justiça fiscal, a EC 132/23 promove uma reforma tributária que visa a criar um ambiente mais propício ao desenvolvimento econômico sustentável e à competitividade empresarial. A concretização desse objetivo para implementação da CBS e do IBS no Brasil, contudo, depende da correta compreensão e aplicação desses princípios na interpretação das suas normas.

[1] Link: https://www.migalhas.com.br/coluna/conversa-constitucional/315375/no-sistema-tributario–a-constituicao-e-um-navio–nao-uma-ancora

Consultado em 23. 5.2024

[2] “As 20 vantagens da Contribuição Geral sobre o Consumo”, Eurico de Santi e Isaias Coelho.

Link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/20-vantagens-da-cgc-x-piscofins-reforma-da-qualidade-sistema-tributario-08052016?non-beta=1

Consultado em 23. 5.2024

[3] “Novo tributo deve ter alíquota federal de 8,8% e de 17,7% para estados e municípios, diz Fazenda” Link: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/04/novo-tributo-deve-ter-aliquota-de-88-federal-e-177-para-estados-e-municipios-estima-fazenda.shtml; e “Como reforma tributária deve impulsionar a economia mesmo com potencial de criar maior IVA do mundo” Link: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51zjzewdjyo

Consultados em 23. 5.2024

[4] Nota Técnica CCiF – Reforma do modelo de Tributação de bens e serviços (julho de 2019)

Link: https://ccif.com.br/notas-tecnicas/

Consultado em 23. 5.2024

[5] GRECO, Marco Aurélio; ROCHA, Sergio André. Vetores do Sistema Tributário Nacional após a EC n. 132.

Revista Direito Tributário Atual v. 56. ano 42. p. 752-780. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2024.