O STF e o drama da abordagem de rotina: Hungria e as cores nas Lamborghinis

  • Categoria do post:JOTA

A Hungria sofre com o seu primeiro-ministro autoritário, Viktor Orbán, exemplo de quem contamina o processo democrático, ataca os direitos fundamentais e as instituições, dentre elas a corte constitucional. O mundo se escandaliza e pede que as atitudes sejam tomadas. No Brasil, uma violação ao direito fundamental que, infelizmente, ocorre rotineiramente, deve ser fortemente rechaçada: a abordagem policial baseada na cor da pele.

Os casos são comuns. Em outubro de 2022, por exemplo, em terras brasileiras, outra “Hungria” sofreu ataque. Na cidade de Samambaia, uma das regiões administrativas do Distrito Federal com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um caso mostra como é difícil superar tal preconceito. O jovem Gustavo da Hungria Neves, conhecido pelo nome artístico de Rapper Hungria, ao dirigir uma Lamborghini roxa, carro de R$ 3 milhões, foi abordado e, juntamente com o seu amigo que lhe acompanhava, revistado, com as mãos na cabeça, pela Polícia Militar. Após exame de bafômetro, foi liberado do que foi classificado como “uma abordagem de rotina”. 

A vida do cidadão que sente o preconceito não é nada fácil. Cor da pele, o “ter” ou “não ter” e o “viver” ou ser “oriundo de” são elementos de uma rotina da discriminação diária. O grupo de Rap Racionais intitulou o fato na música “Nego drama”. 

No último mês de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um passo importante, ao concluir o julgamento do Habeas Corpus 208.240, em que, apesar do dissenso ao caso concreto, fixou entendimento acerca do chamado “perfilamento racial”, que é capaz de invalidar provas colhidas durante abordagens policiais. 

O STF por unanimidade decidiu que a abordagem policial e a busca pessoal motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física são ilegais e que a busca pessoal sem mandado judicial deve estar fundamentada em indícios de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que possam representar indícios da ocorrência de crime. 

O relator-ministro Edson Fachin, em seu voto, evocou vários estudos acadêmicos que comprovam que a atividade de seleção pelo policial de forma habitual é oriunda de discriminação, de preconceito estrutural e institucional. Lembrou que é dever da Suprema Corte “reconhecer não apenas ausência de justa causa, mas causa injusta aquela que determina abordagens policiais a partir da cor”. O perfilhamento racial foi lembrado pela unanimidade dos ministros que rechaçaram tal absurdo. 

Ainda longe de uma solução, o preconceito é agravado pela dificuldade de ascensão social no Brasil, que está na 60ª posição entre 82 economias em um ranking de mobilidade social divulgado pelo Fórum Econômico Mundial. Como comparação, a Noruega está em 2º colocado e a Hungria na 37º posição. A música dos Racionais resume a situação brasileira: “é desse jeito que você vive, é o negro drama”. 

Na região administrativa do Lago Sul, no Distrito Federal – onde o IDH é maior do que o da Hungria ou mesmo da Noruega –, também desfilam Lamborghinis, Porsches e Ferraris de todas as cores. O que se evidencia, porém, é o claro perfilamento social ao não se ter qualquer notícia de “uma abordagem de rotina” com os condutores dos veículos do bairro nobre, de veículos caros e das diversas cores, ouvindo músicas dos mais variados gostos, sem jamais serem abordados e revistados com “as mãos na cabeça”. O drama vale para a periferia. 

Talvez transitar por outras regiões menos favorecidas possa nos relembrar como é difícil construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 

O julgamento do STF define balizas para a melhor aplicação do direito e mais importante, nos faz dar um passo para se “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como prescreve a Constituição Federal. 

Espera-se, assim, que a abordagem de rotina não seja mais pretexto para se enxergar uma cor e ofuscar o que importa. Que as cortes constitucionais, no Brasil e na Hungria, consigam pavimentar uma estrada para que a sociedade caminhe longe da discriminação e no rumo da defesa dos direitos fundamentais, para que jovens, como Gustavo da Hungria, possam cantar em qualquer lugar que “desde menor lutando por um futuro brilhante, hoje maior eu vejo o som tocando nos ‘falante’, sorriso da minha mãe vale mais que um diamante”.