Justiça climática e impacto na infância são debatidos em audiências da Corte IDH no Brasil

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O Brasil sedia a segunda série de audiências públicas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre emergência climática e direitos humanos. Temas como justiça climática, equidade intergeracional, impacto na infância e litigância climática são as principais pautas das discussões realizadas em Brasília (24/5) e que ocorrem em Manaus (de 27 a 29/5). As organizações participantes pediram ao Tribunal que ajude a estabelecer responsabilidades mais efetivas dos Estados nessa temática, com foco nas populações mais impactadas pelos efeitos adversos das mudanças climáticas.

“O propósito é estabelecer um diálogo direto, diverso e participativo que contribua para que o Tribunal chegue a elementos de juízo para resolver perguntas e consultas realizadas pelos Estados. A Corte agradece as autoridades brasileiras e ao estado do Amazonas pelo convite para realizar essas sessões em uma região de transcendência inquestionável considerando o tema que nos convoca aqui”, disse a presidente da Corte IDH, juíza Nancy Hernández López, na abertura da audiência realizada no Teatro Amazonas, em Manaus.

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Essa é a maior e mais participativa audiência pública na História do Tribunal, com mais de 600 contribuições de diferentes delegações, representantes de Estados, ONGs, instituições acadêmicas, representantes de comunidades e povos originários e organizações da sociedade civil sobre as ações e consequências já visíveis da emergência climática mundial.

O Tribunal iniciou a discussão sobre o tema em uma série de audiências públicas realizada em Barbados, no Caribe, no fim de abril, a partir de um pedido de opinião consultiva feito por Chile e Colômbia no ano passado. O Brasil recebeu a segunda parte dos debates, na qual as organizações reforçaram desafios e obstáculos recorrentes.

“Uma das maiores barreiras à justiça ambiental e à resposta a emergência climática é a assimetria entre os litigantes nos processos judiciais, que é exacerbada no caso dos grupos vulneráveis como comunidades indígenas, afrodescendentes ou tradicionais quando enfrentam grandes empresas. Além disso, os demandantes comumente se deparam com um sistema de justiça adverso, com regras restritivas de legitimidade, e operadores jurídicos insuficientemente capacitados para lidar com a complexidade da matéria e normalmente relutantes em intervir em questões climáticas”, afirmou Daniele Galvão, coordenadora jurídica do programa Brasil no Center for Climate Crime Analysis.

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Para a especialista, a lentidão dos processos judiciais envolvendo causas climáticas pode significar a materialização de danos catastróficos e irreparáveis paras as populações.

“A Corte pode equiparar os Estados com ferramentas para abordar e superar os desafios mencionados. Há uma extensa jurisprudência interamericana sobre acesso à justiça já aplicada pela Corte à esfera ambiental na opinião consultiva 23 (emitida em 2017 e que aborda o tema ambiental como tema de direitos humanos)”, disse.

A capacitação sobre temas ambientais no ambiente jurídico foi destacada como ponto crucial também pela professora Patrícia Galvão, pesquisadora associada ao Instituto de Direito Marinho e Ambiental na Universidade de Dalhousie, no Canadá.
“Para garantir acesso à justiça para casos de violações de direitos humanos no contexto de emergência climática, os Estados deveriam enfatizar a capacitação de operadores do direito para reconhecer e considerar complexidades e especificidades das obrigações estatais em direitos humanos no contexto do clima. Os Estados deveriam criar e implementar políticas permanentes de capacitação sobre questões relacionadas à emergência climática voltadas a operadores de direito”, ressaltou a pesquisadora aos juízes da Corte.

Ela defendeu, ainda, que a população afetada deve ter a garantia de ser ouvida por um tribunal competente no tema, e para isso os operadores do direito devem ser treinados pelos Estados em temas como direito internacional do clima, ciência climática, justiça climática e direitos humanos.

O marco de La Oroya

Nas discussões, diversas organizações citaram o caso La Oroya vs. Peru como ponto de inflexão nas análises da Corte, ao ressaltar a conexão entre a questão climática e os direitos humanos. Em março deste ano, a Corte condenou o Peru pela contaminação gerada por um complexo metalúrgico instalado em La Oroya, cidade localizada na região central do país, e seu impacto na saúde de 80 moradores, entre eles crianças. O impacto na infância, inclusive, teve grande destaque nas audiências.

“Um menor que hoje tem 12 anos, ao chegar aos 36, terá um ambiente degradado, péssima qualidade do ar, insegurança alimentar e será exposto a secas e inundações extremas pelo aumento de temperatura, impedindo que viva seus sonhos e projetos de vida“, alertaram representantes da Frente para América Latina da Juventude do Mundo pela Justiça Climática (World’s Youth for Climate Justice).

A associação também destacou a ausência de ações judiciais adequadas para tornar efetivo o acesso a um meio ambiente saudável.

“A equidade intergeracional deve reger o direito de acesso à justiça de menores e juventudes contra políticas regressivas ou não suficientemente ambiciosas para combater a mudança climática. Essas pessoas estão em situação diferenciada de vulnerabilidade que ameaça sua qualidade de vida, esperanças e direito ao futuro”, alertaram.

Para representantes da Avaaz Foundation, os Estados devem cumprir suas obrigações colocando as crianças no centro de políticas de mitigação dos danos das mudanças climáticas e reparação efetiva dos danos, que são diversos.
“Esta será uma geração que está pior que a dos seus pais, com pior acesso à educação, sem água potável, nutrição adequada, e com um sem-fim de problemas, como asma, alergias e outras doenças, inclusive com danos à saúde mental”, afirmou a diretora jurídica da Avaaz, Bieta Andemariam.

Várias organizações de comunidades indígenas deram seus depoimentos sobre como as mudanças climáticas já afetam suas terras e modos de vida.
“Os efeitos gerados pelas mudanças climáticas são sentidos de forma diferenciada nos distintos territórios e agravados em relação a povos originários e tradicionais, dado nossa relação intima com a terra, recursos naturais e biodiversidade. Temos vivenciado os impactos relacionados às mudanças climáticas e somos impactados pelas pretensas soluções”, afirmaram representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e Conselho Terena, em referência à instalação de grandes empreendimentos voltados à produção de energias renováveis dentro e próximas a terras indígenas.

Povos originários mencionaram ainda o desaparecimento de comunidades indígenas e a formação de deslocados climáticos, caso da comunidade de pescadores El Bosque, em Tabasco, no México.

“A mudança climática foi tão drástica que já não há temporada de tempestades ou tempo ruim, agora é o ano inteiro. E se o tempo está ruim, não temos trabalho, porque somos pescadores e vivemos 100% da pesca. Tivemos que sair das nossas casas, não por vontade, mas por necessidade, porque elas foram engolidas pelo mar. E não nos adaptamos na cidade. Não é justo”, contou uma jovem da comunidade indígena afetada.

Responsabilidade dos Estados

Em Brasília, na última sexta-feira, foi a vez das representações dos Estados falarem sobre o tema. “Como foi dito (nas audiências) em Barbados, a América Latina é uma das regiões mais vulneráveis à mudança climática. Suas contribuições (à contaminação) são muito menos significativas do que as dos países desenvolvidos. É fundamental que a Corte, ao esclarecer o conteúdo e o alcance das obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos relativas à mudança climática, considere a centralidade do princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e suas respectivas capacidades”, afirmou Luis Alberto Figueiredo Machado, embaixador extraordinário para mudança climática do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, ressaltando que as mudanças climáticas são um problema transfronteiriço que limita o exercício dos direitos humanos.

Ele destacou à Corte que é imprescindível a construção de um sistema jurídico amplo com foco nas populações mais vulneráveis e afetadas pelos desastres ambientais. “Uma política pública de combate às mudanças climáticas deve ser responsável socialmente e participativa para respeitar os direitos humanos”, afirmou. “O Acordo de Paris é claro ao incorporar uma resposta global às mudanças climáticas no contexto do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza”, disse, enfatizando a necessidade de seguir a melhor evidência científica disponível “em um contexto desafiador em que se divulga a desinformação”.

Presentes à audiência, representantes da Costa Rica também ressaltaram a importância da justiça climática, da equidade intergeracional e do direito da infância, lembrando ações anteriores da Corte na questão climática como o caso La Oroya.

“Essa Corte já reconheceu que a dimensão coletiva de um meio ambiente saudável é devido às gerações presentes e futuras”, afirmaram. “Se atuamos como guardiões responsáveis pelo planeta podemos assegurar às gerações futuras o desfrute de seus direitos humanos. Fazemos votos de que a orientação do Tribunal (nesse parecer consultivo) esclareça e ajude os Estados em um tema vital para nossa sobrevivência como humanidade”.

Outros Estados, como Honduras, usaram exemplos atuais de impactos das mudanças climáticas em seus territórios, como o aumento de tempestades tropicais e seus prejuízos à população, para reforçar a urgência do tema. “Convidamos cada nação a não dar nenhum passo atrás na preservação de nossos recursos e a fortalecer a cooperação internacional”, afirmaram.

Representantes do Paraguai lembraram que o país conta com 44% de seu território com cobertura florestal e que, apesar de ter uma contribuição marginal às mudanças climáticas, é altamente vulnerável aos efeitos adversos desse fenômeno. “Estamos diante de um desafio que vai além do aspecto ambiental, uma vez que impacta diretamente na qualidade de vida e afeta o exercício de direitos das pessoas, incluindo o direito ao desenvolvimento”, afirmaram.

Com base nas apresentações por escrito e presenciais das organizações e Estados participantes nas audiências públicas, a Corte emitirá seu parecer consultivo sobre o tema nos próximos meses.