Em dezembro de 2022, mais de um ano após a edição da Lei 14.230/21 – que alterou artigos sensíveis da Lei de Improbidade Administrativa – o ministro relator Alexandre de Moraes determinou a suspensão de diversos dos seus artigos através de cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7236, manifestando-se, porém, pela interpretação conforme em relação ao art. 23-C, que trata da não aplicação da LIA no âmbito da gestão de recursos pelos partidos políticos.
Para que se entenda desde o início a controvérsia, importante reproduzir a literalidade do art. 23-C da Lei 8249/92:
Art. 23-C. Atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, serão responsabilizados nos termos da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995.
Em outras palavras, disse o legislador que a Lei de Improbidade Administrativa não se adequa aos atos praticados por dirigentes partidários, ainda que na posse de recursos públicos, como aqueles oriundos do fundo especial de assistência financeira aos partidos políticos (fundo partidário).
A interpretação conforme, em relação a este dispositivo, como consta da cautelar deferida pelo Ministro Alexandre de Morais, foi no sentido de que tais atos “poderão ser responsabilizados nos termos da Lei 9.096/1995, mas sem prejuízo da incidência da Lei de Improbidade Administrativa”.
Sua fundamentação resumiu-se a três pontos sucintos:
“os partidos políticos recebem vultosos recursos de natureza preponderantemente pública…, de modo que a descaracterização da eventual aplicação das sanções por ato de improbidade tipificadas constitucionalmente mostra-se igualmente apta a contradizer o § 4º do art. 37 da Constituição Federal, segundo o qual “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário”.
ao possibilitar um tratamento diferenciado aos autores de ilícitos de improbidade em face de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, a referida previsão coloca-se em potencial conflito com o princípio da isonomia, pois os tratamentos normativos diferenciados somente são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado;
considerado o caráter majoritariamente pecuniário das sanções previstas na Lei dos Partidos Políticos, a descaracterização das sanções mais graves estabelecidas pela Lei de Improbidade Administrativa tem o condão de violar os princípios da vedação à proteção insuficiente e, portanto, da proporcionalidade;
Como se percebe, a ratio decidendi da cautelar é baseada majoritariamente no conflito com três princípios constitucionais (isonomia, vedação à proteção insuficiente e da proporcionalidade), e na suposta contradição com o § 4º do art. 37 da Constituição da República.
No entanto, caso referendada essa posição, a aplicação das disposições da Lei de Improbidade Administrativa aos atos que envolvam recursos públicos dos partidos políticos, excepcionado o comando literal do seu art. 23-C, deverá também sofrer análise quanto à sua própria compatibilidade interna.
De início, os dirigentes partidários precisam satisfazer a condição de sujeito ativo do ato de improbidade administrativa, o que encontra óbice na redação do art. 3º da LIA, que restringe a responsabilização do particular.
Veja-se:
Art. 3º As disposições desta Lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade.
Apesar da redação imprecisa do legislador, fica claro que o particular – como o dirigente do partido político – só pode praticar ato de improbidade administrativa de duas formas: ou induzindo um agente público a fazê-lo, ou concorrendo (atuando conjuntamente) com um agente público na sua prática.
Ou seja, o atuar isolado do particular – sem a companhia de um agente público – como quando os dirigentes partidários decidem o destino das verbas do fundo partidário, não ensejaria ato de improbidade administrativa, por falta de previsão como sujeito ativo.
Já pensando no risco de alargamento hermenêutico do termo agente público, a Lei 8429/92 trouxe no seu art. 2º sua definição, in verbis:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei.
Como se extrai do dispositivo, o sujeito ativo do ato de improbidade seria o agente político, o servidor público, ou aquele que exerce vinculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades previstas no art. 1º da LIA.
Por sua vez, o art. 1º determina que “o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social”. Literalidade que exclui, por óbvio, os partidos políticos, que são instituições privadas.
No entanto, deve-se reconhecer que o § 7º, do art. 1º da LIA, excepcionou tal regra, ao dizer que “Independentemente de integrar a administração indireta, estão sujeitos às sanções desta Lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade privada para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra no seu patrimônio ou receita atual, limitado o ressarcimento de prejuízos, nesse caso, à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”.
Da leitura do dispositivo, se poderia dizer que o partido político é uma entidade privada, a que o erário concorre anualmente para sua receita – através do fundo partidário – ao que, portanto, incluído como exceção no rol de proteção previsto no art. 1º da LIA.
Por consequência disso, se o partido político está incluído no rol do art. 1º pela exceção da redação do seu § 7º, tem-se que, ao menos perante a LIA, seu dirigente se enquadraria como agente público, sendo irrelevante a redação do art. 3º quanto ao concurso como particular para configurar o ato de improbidade administrativa.
Portanto, dessa análise sistemática, e da elasticidade hermenêutica, inexistindo conflito interno com os arts. 1º, 2º e 3º da LIA, a única objeção a sua aplicação sobre os atos dos dirigentes partidários estaria no próprio art. 23-C – objeto do controle de constitucionalidade na ADI 7236, que previu expressamente a aplicação isolada da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95) sobre tais atos, como que resolvendo uma antinomia de normas pela especialidade.
Ou seja, ao desconsiderar a opção do legislador em relação ao art. 23-C, a Corte Suprema deixará a cargo da discricionariedade dos legitimados ativos qual legislação será aplicada nas ações em face dos atos de dirigentes partidários, escolha de prateleira que macula o princípio da legalidade, já que antinomias devem ser resolvidas em definitivo, com antecedência, para manter a previsibilidade na aplicação das leis.
Não é dizer que os atos que ensejam enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, não mereçam responsabilização adequada, rígida, inclusive na esfera penal, além do que previsto na Lei 9.096/95, mas é apontar que a Lei de Improbidade não foi pensada para esse fim, e que insistir nessa adaptação causará mais distorções do que benefícios a sua aplicação.
Mesmo porque, considerando que a Lei 9.096/95 prevê sanções na esfera pecuniária, de devolução dos valores malbaratados e aplicação de multas, o que se pretende ao permitir que a LIA seja aplicada sobre tais atos é que os dirigentes partidários também sejam sancionados por a) perda da função pública; b) suspensão dos direitos políticos até 14 anos; e c) a proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
Ora, o dirigente partidário não é necessariamente um agente político/mandatário, pode até sê-lo, mas sua atuação como dirigente não está vinculada a esta condição, de forma que, a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública são colocadas nessa equação como sanção extraordinária, que nada tem que ver com a função exercida no âmbito partidário, o que macula o próprio nexo de causalidade do sancionamento cível.
Sem falar que a LC 64/90 já prevê o sancionamento em oito anos de inelegibilidade para os que condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado (art. 1º, inciso I, alínea e), pelos crimes contra o patrimônio privado – no caso de proposta ação penal – ou ainda contra o patrimônio público – no caso de ação penal que considere a origem dos recursos.
Ou ainda, no caso de se considerar a interpretação sistemática realizada neste artigo sobre o § 7º do art. 1º da LIA (dirigente enquadrado como agente público), também haveria a possibilidade da sanção pela inelegibilidade dos dirigentes em razão da rejeição das contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa (art. 1º, inciso I, alínea e).
Como se nota, não subsiste a alegação de vedação à proteção insuficiente, como mencionado na decisão cautelar. O que há, sob a mesma natureza de proteção, é a sanção da inelegibilidade através do efeito secundário da pena, nos termos da LC 64/90 alterada pela Lei da Ficha Limpa.
Por isso, o julgamento da ADI 7236 possui enorme importância para o ordenamento jurídico brasileiro, já que o relator reiterou em seu voto, no último dia 16.05.2024, a interpretação conforme ao art. 23-C da Lei 8.429/92, ao suscitar, dessa vez, os princípios constitucionais republicano, da igualdade e razoabilidade.
Espera-se que o entendimento do plenário siga pautado pela busca da segurança jurídica, pela coerência sistêmica e da preservação dos valores democráticos e republicanos que regem nosso Estado de Direito.