A discussão sobre a emergência climática e os direitos humanos domina a visita ao Brasil dos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que realizam aqui, até dia 30 de maio, o 167º Período Ordinário de Sessões do tribunal.
A solicitação de parecer consultivo sobre emergência climática, que será tratada em duas audiências públicas, em Brasília (24/5) e em Manaus (27 a 29/5), recebeu um recorde histórico de participação, aponta a juíza Nancy Hernández López, presidente da Corte IDH, em entrevista ao JOTA, concedida conjuntamente com o vice-presidente do tribunal, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch.
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“Esse parecer consultivo que nos traz ao Brasil como parte de uma agenda de vários temas é o com maior participação na história da Corte e muito provavelmente na história dos tribunais internacionais, com 262 observações escritas recebidas e participações de mais de 600 organizações da sociedade civil, acadêmicos, Estados, organizações especializadas no tema climática”, afirma a magistrada.
Mudrovitsch afirma que hoje a questão das mudanças climáticas é uma questão de direitos humanos. “É um ponto que tem que estar claro e que exige responsabilidade coletiva e compartilhada entre os Estados-nação e, quando olhamos para o Brasil, entre federação, estados e municípios”, diz o juiz.
“Cada vez mais pessoas de todas as regiões do mundo recorrem aos juízes em busca de soluções para este problema”, diz a juíza “Parece que este é o tema que está unindo a humanidade neste momento”.
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A Corte também segue atenta às iniciativas do país para o cumprimento das sentenças proferidas em âmbito interamericano. Na entrevista, os magistrados ressaltam o esforço do Brasil na criação de um sistema de monitoramento do cumprimento de sentenças.
Confira a entrevista a seguir.
A Corte realizará no Brasil a segunda parte da audiência pública sobre emergência climática e direitos humanos. Qual é o panorama dos principais argumentos apresentados pelos participantes, depois da primeira audiência realizada em Barbados?
Juíza Nancy Hernández López: A Corte trabalha neste momento com três pareceres consultivos muito importantes. Um apresentado pelo México, relacionado a empresas que produzem armas, e as obrigações dos Estados para controlar essas empresas. Há um segundo que tem a ver com o direito ao cuidado, apresentado pela Argentina. E esse terceiro de emergência climática, solicitado pelos Estados do Chile e Colômbia. Vivemos uma época em que os Estados têm se dedicado a participar na discussão dos temas mais importantes em direitos humanos da atualidade. E isso é muito importante porque mostra que, nesses 45 anos de existência do Tribunal, já se criou uma cultura em que os Estados e o Tribunal são coparticipes na melhoria da situação de direitos humanos na região. Já se veem como parte importante, não só contenciosa, mas como coadjuvantes no alcance de direitos humanos na região. E agora trabalham ativamente para buscar soluções para os temas mais importantes da atualidade. Esse parecer consultivo que nos traz ao Brasil como parte de uma agenda de vários temas é o com maior participação na história da Corte e muito provavelmente na história dos tribunais internacionais, com 262 observações escritas recebidas e participações de mais de 600 organizações da sociedade civil, acadêmicos, Estados, organizações especializadas no tema climática. E por essa participação tão grande decidimos dividir as audiências em três partes. A primeira aconteceu em Barbados, e essa segunda e terceira partes serão realizadas em Brasília e em Manaus para conhecer o impacto em cada uma dessas regiões e os efeitos específicos da mudança climática. No caso do Caribe, a sessão em Barbados teve como objetivo conhecer os efeitos desse fenômeno nos Estados insulares. E agora nossa intenção é escutar em primeira mão e in situ todo o problema gerado pelas mudanças climáticas na Amazônia e em territórios de populações indígenas, entre outros.
O estado do Rio Grande do Sul vive atualmente uma situação muito grave, com as enchentes. Como o parecer consultivo sobre a questão climática da Corte pode ajudar a que situações como essa não voltem a acontecer? Qual é a relação entre a iniciativa da Corte e a prevenção de eventos desta magnitude?
Nancy Hernández López: Na sessão inaugural no Brasil, a Corte prestou sua solidariedade ao povo brasileiro e ao estado do Rio Grande do Sul e às vítimas dessa tragédia humanitária que comoveu a região e o mundo, e que esperamos que possa ser resolvida logo. O que acontece no Rio Grande do Sul é um exemplo de que já vivemos os efeitos diretos e graves da emergência climática em muitas regiões do mundo, incluindo o Brasil, e dos quais consideramos que nenhum dos nossos países vai escapar. E isso apenas com o aumento de 1,2°C de temperatura na Terra. Imagine se chegarmos ao prognóstico de aumento de mais de 2 °C em todo o planeta. Seriam efeitos dramáticos. A mudança climática já é uma realidade. Não é um tema do futuro, como se dizia, mas do presente. A Corte não pode evitar que haja mudança climática, nem controlar o clima. O que essa solicitação de parecer consultivo faz é oferecer a oportunidade de que a Corte estabeleça estândares das obrigações que os Estados têm de cumprir em toda a região para atender a seus compromissos no tema de mudança climática. Muitos dos Estados da região firmaram os tratados mais importantes nesta matéria, dado o que está acontecendo agora, e não só na nossa região. Todas as gerações, de todas as idades, em todas as partes do mundo, estão recorrendo aos juízes para pedir aos Estados que cumpram e façam sua parte em prevenção e atenção ao tema da mudança climática. É um tema que une gerações em todas as regiões do mundo. No nosso sistema interamericano, o parecer consultivo é oportunidade para estabelecer estândares em matéria ambiental e mudança climática que ajude os juízes e Estados da região a adaptar suas leis e suas políticas públicas para atender essa situação.
Juiz Rodrigo Mudrovitsch: Hoje a questão das mudanças climáticas é uma questão de direitos humanos. É um ponto que tem que estar claro e que exige responsabilidade coletiva e compartilhada entre os Estados-nação e, quando olhamos para o Brasil, entre federação, estados e municípios. É importante que se pensem em caminhos, como o governo tem cogitado. O ministro (e advogado-geral da União) Jorge Messias nos disse que o país está considerando criar uma agência nacional de enfrentamento a problemas climáticos, para que se possam ter respostas coordenadas, com responsabilidades compartilhadas e alta velocidade. É uma questão de direitos humanos, uma questão urgente e presente. Não se sabe quando vai acontecer de novo, então se há algo que todos perceberam é que é importante que institucionalmente se estruturem mecanismos que possam dar respostas rápidas, especialmente dirigidas aos mais vulneráveis.
Nancy Hernández López: É importante mencionar que, embora o mundo esteja recorrendo aos juízes, não podemos resolver esse problema sozinhos. Nenhum tribunal, nenhum Estado sozinho pode fazer isso. Isso demanda uma ação de todos os Estados, requer multilateralismo e solidariedade de todos os Estados e tribunais, com ações concertadas entre todos, no exercício de nossas competências, para abordar essa questão.
Já houve algum consenso entre as opiniões de Estados, especialistas e cientistas desde a primeira parte da audiência pública sobre emergência climática?
Nancy Hernández López: Seria prematuro dizer algo neste sentido, porque ainda faltam duas audiências. O único consenso que pude ver é que todos consideram que se trata de uma emergência. Sobre temas jurídicos, não poderia adiantar nenhuma opinião. Há distintos setores, cada um falando sobre impactos em suas áreas. Mas não podemos antecipar nada ainda até escutar a totalidade das observações e entender por onde vão os consensos.
O Brasil e outros países respondem a condenações relacionadas ao tratamento conferido a povos indígenas. Qual é a relação, na sua visão, entre a questão indígena e a questão ambiental das mudanças climáticas?
Nancy Hernández López: Definitivamente, pela relação dos povos indígenas com a floresta, a terra e a preservação dos recursos naturais, os temas de desmatamento, por exemplo, mineração ilegal e contaminação das fontes de água e comida têm impacto climático inegável. Principalmente os grandes desmatamentos, que ocorrem em toda a região, em territórios indígenas, que têm efeito muito forte sobre o aquecimento global. A proteção de fontes de água e recursos do planeta, estejam ou não em territórios de povos indígenas, é indispensável nesse momento para o equilíbrio da humanidade. Mas, dado que há concentração de florestas e recursos naturais em territórios indígenas, definitivamente há confluência de relação entre o tema indígena e a preservação do meio ambiente e a mudança climática.
Como tem sido a atuação da Corte na questão ambiental em termos de sentenças e pareceres consultivos anteriores sobre o tema?
Nancy Hernández López: A Corte tem um parecer consultivo emitido em 2017 sobre o tema ambiental. É o parecer consultivo 23, no qual aborda o assunto integralmente e o considera um tema de direitos humanos e transversal para o exercício dos nossos direitos humanos. E, no ano passado, tivemos o caso La Oroya vs Peru, em que a Corte abordou um caso contencioso pela primeira vez em temas ambientais como a poluição do ar e de fontes de água por um complexo metalúrgico, com graves emissões de metais como chumbo, arsênico e cádmio e que tinham efeitos severos sobre a população de La Oroya. E agora temos essa consulta sobre a emergência climática. São os principais processos sobre o tema.
Mas adianto que os casos vão crescer, tanto nos tribunais nacionais, quanto nos tribunais internacionais. As pessoas estão recorrendo aos juízes para buscar soluções a esse problema, em todos os níveis, pessoas de todas as gerações e regiões do mundo. Parece que esse é o tema que está unindo a humanidade nesse momento.
Como analisa o cumprimento das sentenças da Corte IDH pelo Brasil e outros países que compõem o sistema interamericano?
Nancy Hernández López: O sistema de reparações do sistema interamericano é bastante completo, integral, e tem as chamadas medidas estruturais. Estas, por sua natureza, para que sejam cumpridas, demandam tempo e ação dos Estados. Não se pode medir o cumprimento das sentenças da Corte sob parâmetros de cumprimento de sentença dos tribunais internos, porque as cortes locais resolvem casos individuais, de forma geral, que têm efeito de cumprimento imediato.
No caso das sentenças da Corte, as medidas de não repetição e outros tipos de reparações requerem mudança de leis e políticas públicas diferentes, e isso exige mais tempo. Por isso, os parâmetros para medir o cumprimento de sentença da Corte têm mais a ver com o impacto que elas produzem do que com o tempo que leva. No ano passado, tivemos o maior cumprimento de sentenças já visto. Arquivamos oito casos por cumprimento total dos Estados, e 128 tiveram medidas de reparação parciais. Apresentamos os dados recentemente em Washington.
Tratamos de tamanha diversidade de problemas que o cumprimento depende do tipo de caso e da conjuntura. Mas temos exemplos como o da Costa Rica, que tem 100% de cumprimento de sentenças da Corte. Tivemos avanços muito importantes nos casos da Argentina. E estamos justamente com reuniões de alto nível aqui no Brasil porque o país estabeleceu toda uma estrutura de cumprimento de sentenças da Corte, muito completo, e vemos avanços significativos.
O Brasil tem no Conselho Nacional de Justiça uma unidade para supervisionar isso. E órgãos dedicados, como a Advocacia-Geral da União, o Ministério de Relações Exteriores e o Ministério de Direitos Humanos, encarregados de coordenar o cumprimento das sentenças da Corte.
Acabamos de vir de uma reunião com o advogado-geral da União, Jorge Messias, na qual coordenamos esforços para avançar em casos concretos. E há uma relação de trabalho permanente entre equipes da Corte Interamericana, que criou uma unidade de cumprimento de sentenças a partir de 2015, com equipes dos Estados para acompanhar este andamento.
Ao longo desses 45 anos que o tribunal completa em outubro deste ano, podemos ver o grande impacto da jurisprudência da Corte na região como um catalisador de mudanças efetivas de políticas públicas, principalmente para o fortalecimento democrático, em temas como liberdade de expressão, independência judicial e em mudanças de políticas em temas de discriminação, entre outros.
Rodrigo Mudrovitstch: É muito importante registrar o trabalho que tem sido feito pelo Brasil no cumprimento das sentenças da Corte. O Brasil tem sido pioneiro. E o Conselho Nacional de Justiça tem feito um trabalho impecável, já há algumas presidências, tanto na do ministro Luiz Fux, depois com a ministra Rosa Weber, e agora na do ministro Luís Roberto Barroso.
Primeiro houve a criação de uma unidade de monitoramento e fiscalização das decisões da Corte. Foi um projeto pioneiro que inspirou outros países. E neste ano tive a notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo criou um setor, dentro do maior tribunal do Brasil nos estados, de monitoramento e fiscalização das decisões da Corte. Ao que consta, há seis tribunais hoje no Brasil que fazem isso, numa prática que tem se disseminado a partir da orientação do CNJ.
E o CNJ também tem editado resoluções muito importantes. Mencionaria a resolução 123, que fala da obrigatoriedade de que os juízes tenham conhecimento e apliquem os tratados internacionais de direitos humanos e as sentenças da Corte Interamericana independentemente de qual país seja o destinatário. Quando se olha para o controle de convencionalidade, isso tem um impacto tremendo, porque os juízes passam a adotar não somente os estândares que vêm nas sentenças da Corte destinadas ao Brasil, mas todos eles, o que faz todo o sentido, porque a Convenção é uma só.
Então, para se levar o controle de convencionalidade a sério, é importante ter em consideração todas as sentenças da Corte, sejam em casos contenciosos ou pareceres consultivos, independentemente do país destinatário. Acho que é exatamente esse o espírito do Conselho Nacional de Justiça, e não só, mas de todo o Poder Judiciário.
Veja a beleza disso. Há dois anos estivemos no Superior Tribunal de Justiça. Neste ano a sessão foi abrigada pelo Supremo Tribunal Federal, vamos ter sessão no Tribunal Superior Eleitoral, no Tribunal Superior do Trabalho. Também já tivemos na Corte Interamericana visitas do Tribunal Regional Federal, da Escola Nacional da magistratura, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, enfim, tudo isso mostra que a cultura do controle de convencionalidade no Brasil aumentou muito. E isso naturalmente vai se refletir no cumprimento das sentenças da Corte. E, mais do que no cumprimento da Convenção, isso é importante porque quem está na linha de frente da defesa dos direitos humanos são os juízes nacionais.
Outro ponto é que quando olhamos para o cumprimento de sentenças da Corte também é necessário ter uma visão do que [o brasileiro, ex-juiz da Corte IDH Antônio Augusto] Cançado Trindade falava muito, de uma perspectiva principista. No sentido de que muitas vezes pode até ser que não se tenha cumprimento integral de uma sentença, porque as sentenças da Corte muitas vezes são ambiciosas, e têm que ser, porque temos um mandamento de reparação integral.
Mas elas produzem efeitos tão relevantes na mudança de políticas públicas ou na mudança de instituições, que esses efeitos muitas vezes são sentidos anos depois. Isso não significa dizer que a Corte tem que ser mais contida nas reparações, nem que se tenha que medir à luz do nível de cumprimento imediato o impacto que é gerado a partir disso. Até porque muitas vezes um estândar de um caso de outro país, talvez numa reparação ambiciosa, vai ter um impacto que não é medido automaticamente em outro país.
Muitas das condenações do Brasil na Corte IDH estão relacionadas à violência policial. Como analisar as mudanças no país a partir das orientações da Corte em casos deste perfil?
Nancy Hernández López: Não tenho detalhes de todos os casos, mas em alguma das reuniões que tivemos aqui soubemos que, por ocasião de um caso da Corte Interamericana, foi criada uma política de atenção à redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro. Foi em parceria com o Conselho Nacional de Justiça.
É um exemplo do que falávamos do compromisso do Brasil e do efeito desse sistema pioneiro de monitoramento do cumprimento de sentenças da Corte. E aqui podemos ver um efeito concreto em um tema tão amplo e importante para os direitos humanos na região. Claro que há muito por fazer ainda sobre esse tema na região em geral, mas é uma demonstração de como o cumprimento das sentenças da Corte é levado a sério.
Tradução e edição: Elisa Martins