No Brasil, muito se fala em direitos humanos. Essas duas palavras permeiam leis, sentenças judiciais e decretos; são citadas em falas parlamentares, noticiários e filmes; aparecem, volta e meia, em trabalhos escolares ou acadêmicos, relatórios estatísticos, mesas de bar e em inúmeros outros lugares. Fala-se em direitos humanos quase todos os dias por aqui, mas provavelmente pouca gente sabe o que eles realmente significam.
Não fosse assim, a conhecida frase direitos humanos para humanos direitos não estaria presente na ponta da língua de uma massa de pessoas autodenominadas “de bem” espalhadas por todo o país. Esse clichê embute uma seletividade inexistente na aplicação desses direitos.
“Direitos humanos” representam o reconhecimento da dignidade inerente a toda e qualquer pessoa. São normas que delimitam e defendem tal dignidade. Abarcam, portanto, gente boa e ruim, pobre e rica, seguidora da lei ou criminosa, independentemente de gênero, orientação sexual, credo, ideologia política ou origem[1].
Assim, não existem direitos humanos apenas para humanos direitos. Eles existem para todas, todes e todos, igualmente. Além disso, referem-se a aspectos de nossas vidas que passam despercebidos pela maioria das pessoas.
Um exemplo disso é o estabelecimento do direito humano a um meio ambiente saudável, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 28 de julho de 2022[2]. O reconhecimento desse direito é resposta à própria ação humana de predação da natureza, levando-nos a desastres ambientais como as enchentes históricas que testemunhamos, consternados, no Rio Grande do Sul neste mês de maio.
Infelizmente, a verdade é que, mesmo decorridos mais de 75 anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, seguimos violando a dignidade das pessoas nos mais diversos aspectos. Intolerância, preconceito e violência contra minorias são apenas alguns exemplos do que se vê mundo afora, nos cinco continentes.
Nosso país se destaca especialmente no desrespeito a esses direitos, seja por sua brutal desigualdade social, seja pelo descumprimento sistemático de normas que deveriam salvaguardar a integridade física, mental e moral de qualquer pessoa que se encontre em nosso território. As violações são amplas, várias e cometidas tanto pelo poder público como por particulares, com preocupante frequência.
Diante desse cenário, o presente arranjo institucional brasileiro se beneficiaria do reconhecimento de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH). Trata-se de entidade independente, autônoma, com mandato legal – usualmente constitucional – e exclusivamente dedicada a atuar na promoção e na defesa da dignidade humana.
Uma INDH brasileira reconhecida pela ONU teria assento e voto no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, mantendo laços mais estreitos com a comunidade internacional que atua nessa seara.
Embora muito relevante, o reconhecimento de uma INDH brasileira pela ONU é efeito colateral do cumprimento de requisitos que constroem uma entidade mais apta a lutar pelo respeito às pessoas neste país.
A total autonomia (inclusive financeira) e independência dessa entidade; o processo transparente de escolha de sua liderança; o mandato determinado e de duração suficiente para quem a dirija, bem como a previsão legal para demandar providências junto a autoridades públicas e entidades privadas, são alguns dos requisitos[3] que empoderam esse tipo de instituição para atuar em prol dos direitos humanos.
Uma tal entidade tem o potencial de agir com muito mais energia, no que tange à fiscalização do poder público e de entes privados, notadamente os de interesse coletivo. Sua independência de quaisquer outros poderes a torna impermeável a pressões indevidas, permitindo-lhe atuar exclusivamente em prol do bem comum.
Segundo a Aliança Global de Instituições Nacionais de Direitos Humanos (GANHRI, na sigla em inglês) – colegiado que reúne as INDHs ao redor do mundo –, apenas três nações da América do Sul não dispõem de INDHs: Guiana, Suriname e Brasil[4]. Num país de território e população continentais, varrido por graves problemas de direitos humanos e líder regional, é vergonhoso que até hoje não tenhamos conseguido acreditar uma organização com essa finalidade.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) vem tentando superar obstáculos que impedem seu credenciamento como INDH. Nos últimos anos, gestões têm sido feitas junto ao Ministério Público Federal, órgão a que ela pertence, para que sejam criadas as condições necessárias à sua acreditação junto à ONU e à GANHRI.
Estruturar uma tal entidade traria imensos ganhos à defesa dos direitos humanos e da cidadania no Brasil. Daríamos, sem dúvida alguma, um importante passo rumo a elevar nosso nível civilizatório, bem como a construir a sociedade livre, justa, solidária e baseada na dignidade humana, almejada por nossos constituintes nos artigos iniciais da Constituição Cidadã[5]. Foi esse o desafio que nos impusemos. E, para que ele possa ser superado num futuro próximo, é preciso um olhar mais atento por parte dos poderes públicos e da sociedade civil, pelo bem de todas, todes e todos.
[1]https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 09/05/2024.
[2]https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/momento-historico-onu-declara-que-meio-ambiente-saudavel-e-um. Acesso em 10/05/2024.
[3]https://acnudh.org/wp-content/uploads/2010/12/PORT-triptico-INDH-final.pdf. Acesso em 10/05/2024.
[4]https://ganhri.org/membership/. Acesso em 10/05/2024.
[5]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 10/05/2024.