A tragédia humanitária no Rio Grande do Sul e o mercado de seguros

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As enchentes que assolam o Rio Grande do Sul já são a maior tragédia natural do Brasil e, pela extensão dos danos, sequer ainda dimensionados, já pode ser considerada, sem sombra de dúvidas, o sinistro mais caro para a indústria seguradora brasileira, com potencial de até mesmo superar os danos causados pelo furacão Katrina ocorrido no Sudeste dos Estados Unidos, e que ceifou 1.833 vidas no final de agosto de 2005. E se trata de fenômeno com repercussões nacionais, dado que o estado é o quarto maior PIB do país e, consequentemente, o quarto maior contribuidor com a União Federal em termos de arrecadação.

A título comparativo, a população da Grande Porto Alegre é de cerca de 4,3 milhões de habitantes, enquanto a população da região metropolitana de Nova Orleans, por ocasião das enchentes de 2005, era, aproximadamente, 4 vezes menor. A extensão territorial do Rio Grande do Sul (281.730 km2) representa mais que o dobro do estado norte-americano da Louisiana.

Números preliminares, apurados até a noite do último domingo (12), dão conta de mais de 2,1 milhões de pessoas afetadas pelas enchentes em todo o estado. De acordo com boletim desta quinta-feira (16) da Defesa Civil, são 151 mortes confirmadas, 104 desaparecidos e mais de 800 feridos. O número de desabrigados ultrapassa 600 mil.

Enquanto a devastação provocada pelo furacão Katrina na região de Nova Orleans, há 19 anos, durou cinco dias, no Rio Grande do Sul já transcorreram duas semanas desde o início das enchentes, e, infelizmente, ainda não há previsão de término. Quando a situação se normalizar, estima-se de 2 a 3 semanas até que as águas dos rios e lagos das regiões mais afetadas (incluindo a capital Porto Alegre) voltem aos seus cursos normais.

Os valores das indenizações pagas pelas seguradoras norte-americanas por ocasião do Katrina chegaram, à época, a US$ 17,6 bilhões e o impacto econômico global foi de US$ 160 bilhões (valores históricos – incluindo perdas não seguradas)[1].

Aqui os pacotes de ajuda governamental recém-publicados chegam a R$ 60 bilhões. Desse total, a maior parte refere-se a empréstimos com juros subsidiados para pequenos negócios e agricultores familiares. Tais empréstimos demandam muito tempo com projetos e credenciamentos para serem efetivamente implementados. A outra parte inclui antecipação de restituição de IR, abonos, auxílios como o seguro-desemprego, gás, bolsa família, e, ainda, suspensão de pagamentos de dívidas, o que são paliativos frente ao verdadeiro estado de guerra pelo qual passa a população gaúcha.

Diante deste evento catastrófico ainda em andamento – com repercussão mundial por afetar mais de 80% dos municípios de um estado com forte vocação para a indústria, agricultura, pecuária e turismo – é natural que já se discuta movimentos coordenados de todos os setores da sociedade para a redução dos impactos do evento e reconstrução das cidades, bem como a premente destinação de recursos, por parte do governo federal, diretamente aos cidadãos atingidos, tal como foi feito durante a pandemia da Covid-19.

Além das atividades econômicas referidas no parágrafo acima, destaca-se também no Rio Grande do Sul a indústria do petróleo. A central de matérias-primas do Polo Petroquímico de Triunfo (Braskem), a maior do Brasil, tem capacidade produtiva anual de 1.452 mil toneladas de etileno e ainda são desconhecidos os prejuízos advindos da redução desta produção.

Neste momento o papel da indústria seguradora revela-se fundamental como um dos pilares para a reconstrução dos estabelecimentos industriais, comerciais e dos imóveis residenciais segurados.

Importante mencionar que o Rio Grande do Sul possui o maior percentual de seguros residenciais do país, em que 38% dos imóveis residenciais tem algum tipo de seguro. No estado de São Paulo, por exemplo, esse índice chega a apenas 29%. É do interesse do setor de seguros que não seja perdida toda essa cultura do seguro no Sul do Brasil.

Após a calamidade, a tendência natural é de que aumente consideravelmente o número de apólices de seguros como um todo, inclusive aquelas mais custosas que possuem cobertura para eventos extremos como enchentes, não só na região como em todo o país. Por ser mais onerosa a cobertura para inundações não é padrão e comumente não é contratada, o que, sem dúvida, deve gerar discussões judiciais mormente em situações de calamidade como a presente.

Segundo a Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg)[2] as reservas atuais das seguradoras brasileiras seriam suficientes para fazer frente aos pagamentos e regulação dos sinistros. A entidade já vem fazendo recomendações especiais a todas as seguradoras que atuam no Rio Grande do Sul, para que, por exemplo, sejam estendidas automaticamente apólices vencidas em maio ou próximas do vencimento por mais alguns dias, bem como seja flexibilizado a questão da impontualidade de seus segurados no decorrer do corrente mês, tudo para evitar que os clientes fiquem sem cobertura.

Outras iniciativas de ações solidárias por instituições patrocinadas por empresas e seguradoras, como é o caso da Estímulo pela Liberty Seguros, vêm promovendo apoio financeiro (linhas de crédito ágeis) para que os pequenos empreendedores possam se reestruturar, mantendo empregos que garantam a continuidade da economia das regiões impactadas pelas enchentes.

Como já ocorreu em outras tragédias que abalaram o mundo, a colaboração dos governos, instituições e empresas para ajuda humanitária é essencial para o reestabelecimento mais rápido da normalidade e superação da crise econômico-social.

A constituição de fundos humanitários para pagamento, inclusive, de indenizações, com a participação dos resseguradores locais e internacionais, pode ser mais uma opção para contribuir com as demais medidas de auxílio para a região, mitigando as perdas neste momento emergencial e servindo como ferramenta de solução não judicial de disputas em série.

A título de exemplo, conforme amplamente noticiado à época, no caso do acidente com o voo que vitimou o time da Chapecoense no final de 2016, mesmo tendo a seguradora concluído em sua regulação que a companhia aérea LaMia estava em sério descumprimento de vários termos e condições constantes da apólice de seguro, e que, portanto, a apólice não forneceria cobertura para o acidente, seus resseguradores, por liberalidade dada à situação e comoção internacional, estabeleceram um Fundo de Assistência Humanitária para dar assistência financeira aos sobreviventes e aos herdeiros daqueles falecidos no voo LMI2933.

Até para não desestimular a criação desses fundos humanitários – caso criados – é essencial que se evite situações de fomento de novas reclamações/judicialização por aqueles que venham a acessar um fundo com esta finalidade, pois uma nobre iniciativa como esta serviria para garantir um auxílio emergencial com a finalidade de extinguir demandas (Quitação) a beneficiários que não teriam direito à indenização dado a ausência de cobertura específica para os casos de enchentes em suas apólices ou até mesmo para situações não seguradas.

Como se sabe, as apólices de seguro para os casos de enchentes são minoria dado os elevados custos de uma cobertura como esta, com reflexo direto no valor dos prêmios, embora haja precedentes que afastam essas cláusulas contratuais de exclusão quando aplicado o Código de Defesa do Consumidor (havendo precedentes inclusive da época do furacão Catarina, fenômeno climático ocorrido no Sul do país[3]).

Por fim, caso isso não seja feito e não se pense em outro formato coletivo de solução de problemas (como ações civis públicas ou centros de mediação especializados) antevemos nos próximos meses um boom de ações na Justiça discutindo questões securitárias entre proprietários de imóveis, empresas e consumidores e seguradoras em razão das inundações. O Poder Judiciário gaúcho deve se preparar.

[1] Relatório SwissRe Institute “15 years after Katrina: Would we be prepared today?” Disponível em: https://www.swissre.com/dam/jcr:a835acae-c433-4bdb-96d1-a154dd6b88ea/hurrican-katrina-brochure-usletter-web.pdf

[2] Artigo em Época Negócios: O maior sinistro da história do Brasil: como seguradoras estão lidando com estrago recorde de inundações no Rio Grande do Sul, por Daniel Gallas da BBC News em Londres (10/05/2024).  Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/bbc/noticia/2024/05/cdatao-maior-sinistro-da-historia-do-brasil-como-seguradoras-estao-lidando-com-estrago-recorde-de-inundacoes-no-rio-grande-do-sul.ghtml

[3] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/segurado-recebera-indenizacao-por-destruicao-de-casa-atingida-por-furacao-catarina