As enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul na primeira quinzena de maio deste ano já configuram a maior tragédia climática do estado e uma das mais severas da história do Brasil[1]. Além das trágicas e irreparáveis perdas de vidas, será necessário mobilizar recursos em volume sem precedentes no país em eventos desse tipo. As estimativas, ainda preliminares, apontam valores que ultrapassam R$ 90 bilhões.
Embora a resposta governamental a esses eventos extremos deva ser rápida, é crucial garantir mecanismos de transparência e integridade na alocação de verbas, de modo a prevenir a corrupção e evitar a perda de recursos destinados a salvar vidas e mitigar danos socioambientais[2].
Isso é necessário por três motivos principais: i) uma parte significativa dos recursos para enfrentar tragédias climáticas envolve obras de infraestrutura, tradicionalmente suscetíveis a desvios e a outras formas de corrupção; ii) na fase atual de socorro, parte dos recursos destinados a suprimentos e itens essenciais está sendo garantida por meio de emendas parlamentares, com baixa transparência, como no caso das chamadas “emendas Pix”; iii) a tragédia no Rio Grande do Sul expõe a fragilidade da própria governança climática no Brasil, com os diferentes níveis de governo sendo até agora incapazes de implementar medidas efetivas de adaptação.
Em relação ao primeiro aspecto, segundo a OCDE[3], até 33% dos investimentos em infraestrutura são perdidos por meio da corrupção associada ao setor. Obras de infraestrutura frequentemente se tornam alvos de corrupção devido aos altos valores envolvidos, à complexidade das etapas de planejamento, licitação e execução, e à existência de processos decisórios pouco estruturados.
Práticas corruptas como fraude em licitações, superfaturamento e formação de cartéis têm impactos significativos nos projetos, causando atrasos na entrega, aumento de custos, redução na qualidade e ampliação dos impactos socioambientais. O favorecimento de empresas corruptamente conectadas em detrimento das mais eficientes limita o acesso aos serviços, especialmente para grupos vulnerabilizados, aumentando a desigualdade e a exclusão social, e até mesmo colocando vidas em risco[4].
Na fase do socorro, cuja prioridade é a distribuição rápida e eficiente de recursos essenciais, há riscos de tipos distintos de corrupção, como desvio, má alocação e furto de suprimentos, além de suborno para acesso a mantimentos[5]. Na tragédia climática que afeta o Rio Grande do Sul, ainda mais alarmante é a captura da destinação de verbas emergenciais pelo Congresso, via emendas parlamentares com baixa transparência, riscos de desvios e favorecimento de redutos eleitorais em detrimento de áreas mais necessitadas.
Diversas medidas foram anunciadas pelo governo federal e pelo Congresso para reparar danos às vítimas, e reconstruir e melhorar a infraestrutura da região. Embora o governo federal tenha anunciado R$ 50 bilhões via medida provisória para antecipação de benefícios, projetos de infraestrutura e aporte de recursos para crédito voltados a trabalhadores, empresas, estado e municípios[6], a ação de ministérios estratégicos no enfrentamento da catástrofe será limitada por decisões de congressistas.
Como exemplo, mais da metade da verba discricionária do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, órgão central na resposta a eventos extremos, é controlada pelo Congresso. Os parlamentares costumam direcionar emendas para tratores e pavimentação de estradas em seus redutos eleitorais, em detrimento a ações relacionadas à agenda climática[7]. O problema se estende a outras pastas. Em 2024, as destinações parlamentares respondem por mais de 30% da verba discricionária de sete ministérios do governo Lula.
Nesse sentido, é especialmente preocupante o uso das chamadas transferências especiais, ou “emendas Pix”, para destinar recursos para regiões afetadas por eventos extremos. Na segunda semana de maio, foi anunciada a antecipação da liberação de R$ 580 milhões em emendas individuais, com a possibilidade de envio de um total de R$ 1,06 bilhão. Apesar da urgência em fornecer ajuda e de mobilizar todos os recursos disponíveis, a utilização deste tipo de emenda apresenta riscos significativos.
As “emendas Pix” permitem que parlamentares destinem recursos sem indicar sua finalidade[8], e a falta de transparência nessas emendas dificulta o acompanhamento do destino dos recursos, favorecendo desvios, má alocação, duplicidade e sobreposições. Além disso, áreas mais necessitadas podem ser preteridas para beneficiar locais que permitam maiores ganhos políticos-eleitorais[9] .
Um exemplo claro dessa má alocação de recursos é o semiárido brasileiro, onde o uso de emendas parlamentares e o loteamento de órgãos federais prejudicam o acesso à água[10].
É necessária a existência um plano estruturante e baseado em critérios objetivos que oriente a alocação de verbas, ao invés de ações pontuais e dispersas baseadas em decisões individuais de parlamentares.
Por fim, a situação ocorrida no Rio Grande do Sul também coloca em evidência a fragilidade do próprio sistema de governança climática brasileiro. Os diferentes níveis de governo foram incapazes de implementar medidas de adaptação, mesmo após dois episódios graves de enchentes no Rio Grande do Sul em 2023[11] e mesmo existindo estudos apontando que a região poderia ser afetada por este tipo de evento extremo[12].
A ocorrência de eventos climáticos extremos – como secas, enchentes, ondas de calor – aumentou em quantidade e em intensidade no Brasil[13] e novos desastres como o que afetou o Rio Grande do Sul devem ocorrer em outras regiões do país. Sem um planejamento adequado, com medidas centradas na recuperação de curto prazo e não na adaptação, e com a pulverização de recursos do orçamento atendendo a interesses individuais de parlamentares, não será possível enfrentar os danos das mudanças climáticas no Brasil de maneira adequada.
Diante desse panorama, é preciso incorporar elementos de transparência e integridade em todas as etapas e níveis de decisão da resposta às enchentes do Rio Grande do Sul e aos demais eventos extremos que irão ocorrer em outras regiões. São necessários mecanismos de cooperação e coordenação entre diferentes atores envolvidos – governos, organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e comunidades afetadas – para garantir transparência e eficiência na distribuição de recursos e evitar duplicidade e sobreposição de programas.
É importante também fortalecer a atuação de órgãos de controle, como tribunais de contas, controladorias e ministérios públicos, e os mecanismos de controle social, engajando as comunidades afetadas em todas as etapas do processo de ajuda, garantindo transparência em processos de contratação pública e implementando ferramentas de monitoramento para prevenir e combater a corrupção e permitir uma resposta eficaz a casos de má gestão. Por fim, é central reduzir o volume de recursos destinado a emendas parlamentares, retomando a capacidade do Executivo implementar planos estruturantes, sem prejuízo ao papel central do Congresso Nacional na aprovação do orçamento e fiscalização do uso dos recursos públicos.
[1] Até o dia 11 de maio, o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional estimava que cerca de 600 mil pessoas estariam desalojadas e mais de 80 mil desabrigadas. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/tragedia-do-rs-gera-maior-evacuacao-de-casas-no-brasil-em-3-decadas.shtml#:~:text=Os%20dados%20da%20s%C3%A9rie%20hist%C3%B3rica,trag%C3%A9dias%20nas%20%C3%BAltimas%20tr%C3%AAs%20d%C3%A9cadas
[2] https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/atlas-clima-e-corrupcao
[3] OCDE. Putting an end to corruption. Paris, OECD Publishing, 2018. Disponível em: https://www.oecd.org/corruption/putting-an-end-to-corruption.pdf. Acesso em: 11.mai.2024.
[4] https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/atlas-clima-e-corrupcao
[5] FENNER, G; MAHLSTEIN, M. Curbing the Risks of and Opportunities for Corruption in Natural Disaster Situations. In: HARPER, E. International Law and Standards Applicable in Natural Disaster Situations. International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies (IFRC), 2009.
[6] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/05/09/governo-federal-anuncia-12-medidas-para-socorrer-rs-com-injecao-de-r-50-bi-para-estado.htm
[7] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/congresso-domina-verba-de-ministerio-que-atua-em-desastres-e-prioriza-trator-e-asfalto.shtml
[8] https://blog.transparencia.org.br/emendas-pix-governo-federal-mantem-baixissima-transparencia-no-processo-de-liberacao-das-emendas-pix-em-2024/
[9] https://crusoe.com.br/diario/o-risco-de-corrupcao-em-emendas-pix-para-o-sul/
[10] https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/politica-da-seca/
[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/tragedia-do-rs-gera-maior-evacuacao-de-casas-no-brasil-em-3-decadas.shtml#:~:text=Os%20dados%20da%20s%C3%A9rie%20hist%C3%B3rica,trag%C3%A9dias%20nas%20%C3%BAltimas%20tr%C3%AAs%20d%C3%A9cadas
[12] Exemplo: https://web.archive.org/web/20190124211143/http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80182/Infra%20Urb%20Produto%201.pdf
[13] INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Assessment Report 6 Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Summary for Policymakers, Working Group I, 2021. ______. Assessment Report 6 Climate Change 2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Summary for Policymakers, Working Goup II, 2022.