PL 815/22 e a experiência com a recuperação empresarial

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Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 815/2022, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD-RJ) e relatoria do deputado Vitor Lippi (PSDB-SP), que tem por objeto regular “a reorganização de sociedades cooperativas, altera dispositivos da Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, e dá outras providências”.

Constituem sociedades cooperativas, objeto da Lei 5.764/71, “as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro” (grifos nossos). Assim, de natureza civil (e não empresarial), as cooperativas não se sujeitam ao regime falimentar e, sua extinção opera-se através da liquidação de seus ativos.

De acordo com a Justificação do Projeto de Lei, “as cooperativas têm desvantagem competitiva e estão desprotegidas em razão da impossibilidade de utilização dos procedimentos de recuperação judicial e extrajudicial hoje previstos na Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005” (novamente, grifos nossos).

Eis que o objeto do PL 815/22 é, então, o acesso das sociedades cooperativas (exceto as cooperativas de crédito reguladas pela Lei Complementar 130/09) a instrumento jurídico próprio que as permitam superar eventuais crises econômicas-financeiras, evitando-se sua dissolução e mantendo preservada sua atividade econômica.

A manutenção da atividade econômica das sociedades cooperativas é essencial ao mercado, mas o instrumento jurídico para a “recuperação” da atividade econômica, ora chamado de “reorganização” cooperativa, deverá considerar as características de uma sociedade civil e esgotar as cautelas próprias da Lei 5.764/71, sob pena de gerar retração e insegurança jurídica ao mercado que se pretende proteger.

De cunho colaborativo, e repisando discussões setoriais já realizadas, destaca-se, para o bom uso do novo instituto, a necessidade de o PL estabelecer a circunstância de declaração da crise econômico-financeira, isto porque, a título exemplificativo, as sociedades cooperativas, por ordem legal, devem manter um fundo de reserva destinado a situações de crise e, o PL 815/22 não exige para caracterização da crise econômico-financeira que este mesmo fundo de reserva tenha sido esgotado!

Ainda, a Lei 5.764/71 também prevê que, em situações de crise, sendo uma sociedade de pessoas, estas pessoas (os cooperados) devem ser chamados a compor os prejuízos e, da mesma forma, o PL 815/22 também não prevê como condição para acesso ao instrumento jurídico um infrutífero chamamento dos cooperados!!

Outro exemplo da equivocada redação do PL é que, embora para atos de extinção das sociedades cooperativas seja necessária a convocação de Assembleia Geral Extraordinária (com votos favoráveis de pelo menos 2/3 dos cooperados presentes) e, outros atos serem da competência da Assembleia Geral Ordinária (com mesmo quórum de votação), há previsão de, em caso de urgência (!!), a própria diretoria ou o Conselho de Administração poderem requerer a reorganização cooperativa! E mais, há também uma previsão ininteligível de possibilidade de acesso à reorganização cooperativa: “Art. 2º. (…) §4º. Desde que atendidos os demais requisitos desta Lei, poderão requerer a reorganização cooperativa a maioria dos cooperados remanescentes de sociedade cooperativa que tenha perdido da administração.” (destacamos).

Além de questões de ordem processual executória que demandam ajustes e/ou esclarecimentos pelo legislador, a preservação da atividade cooperativa, objeto central da Justificação[1], não é assegurada na redação atual do PL, isso porque, embora o ato cooperativo (os praticados os cooperados e as sociedades cooperativas e vice-versa) seja considerado “extraconcursal”, as operações derivadas dos atos cooperados, que se constituem a principal receita das sociedades cooperativas, não se encontram expressamente protegidas.

Em apertada síntese, a preservação da atividade cooperativa depende da proteção das transações de seus ativos circulantes, que devem ser expressamente considerados extraconcursais para fins da reorganização cooperativa pretendida!

Voltando-se novamente às razões do Projeto de Lei, que textualmente disse ter considerado “fatores importantes derivados inclusive da experiência de 15 anos de vigência da recuperação empresarial”, o dever de todos é de promover a construção de remédio jurídico que não contenha oportunidades para que os nobres princípios que o impulsionam não sejam dolosamente “contornados”, e assim, não se repudie seu uso desmedido, desleal e para fins não republicanos, de sorte ao remédio não se transformar em veneno para outras cooperativas que efetivamente precisam acessar o instituto, credores, consumidores e todo o mercado, pessoas estas que nos últimos anos, vem sentindo os efeitos colaterais da “experiencia da recuperação empresarial”, notadamente no agronegócio!

Acreditamos na nobreza da proposta legislativa, que somente se consubstanciará com os ajustes e repostas às considerações acima relatadas, pois, caso contrário, atrairemos para as situações que o PL busca normatizar o conceito de dívida lapidado por Bierce[2].

[1] “os procedimentos de recuperação do regime empresarial não podem ser aplicados sem preservar as características da sociedade cooperativa e a sua instrumentalidade para a atividade econômica dos cooperados”.

[2] “dever (owe), vt. Ter (e manter) uma dívida. Antigamente a palavra significava não a dívida, mas a posse; significava “deter”, e na cabeça dos devedores ainda há grande confusão entre créditos e débitos.” BIERCE, Ambrose, 1842-1914. Dicionário do Diabo: tradução e apresentação Rogério W. Galindo. 1ª ed. São Paulo : Carambaia, 2016, p. 83