Em 23 de abril foi aprovado pelo Senado o PL 6007/23, que versa sobre princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas com seres humanos por instituições públicas ou privadas e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Trata-se de um substitutivo da Câmara dos Deputados ao PLS 200/2015. O texto aprovado foi o relatório proveniente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que rejeitou algumas mudanças que haviam sido feitas na Casa revisora.
No último dia 8 de maio o projeto foi remetido à Casa Civil, submetendo à sanção pelo Presidente da República, prevista para ocorrer até o próximo dia 28. O projeto pode ser aprovado integralmente, aprovado com vetos ou totalmente vetado. No caso de veto, a matéria vetada voltará à análise do Congresso Nacional. Aprovado integral ou parcialmente, haverá a sanção e publicação da nova lei com o texto que foi aprovado, em Diário Oficial, com vacatio legis de 90 dias para produzir efeitos. Ainda precisará ser regulamentada por ato do Poder Executivo (Decreto), em regulamento ou em regramento do próprio CEP.
A relevância das pesquisas com seres humanos para o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação, assim como para a melhoria dos cuidados de saúde, é inquestionável. É por meio delas que, por exemplo, se demonstra a qualidade, a segurança e a eficácia possibilitando o registro, a comercialização e a administração de um novo medicamento, dispositivo médico ou produto de terapia avançada, perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Há, também, pesquisas humanas e sociais, sem fins de registro do produto sob pesquisa, relevantes para a evolução do conhecimento. Nem toda a pesquisa com seres humanos é médica.
Até o presente momento, em que o Projeto aguarda sanção, a regulamentação das pesquisas com seres humanos se sustenta em normas infralegais publicadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pela Anvisa. Com a nova conjuntura, a promessa é que o investimento total do setor biofarmacêutico cresça para 254 bilhões de dólares até 2026 e o Brasil poderá saltar dez posições na lista dos países líderes. Hoje, figura na 20ª. É o que refere o Parecer da CCJ, que acolheu o substitutivo da Câmara, com exceções1.
Um dos pontos rejeitados pela CCJ refere-se à supressão do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos. Segundo o Relator, Dr. Hiran (PP/RR), a manutenção do Sistema Nacional segregado em instância nacional de ética e instância de análise ética em pesquisa, representada pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) “é mais adequada, pois preserva um sistema de revisão ética das pesquisas com seres humanos que já funciona há décadas no País, mesmo sem o desejável e necessário respaldo jurídico, mas que, ainda assim, representou um progresso no sentido da proteção dos participantes das pesquisas”. Para o Senador, “não devemos desconhecer os avanços obtidos, mas sim aprimorar o que já existe, especialmente dotando esse sistema da legalidade e segurança jurídica necessárias”2.
O presente artigo de opinião representa o início de uma série em que a autora se debruçará sobre o “Direito da Pesquisa com Seres Humanos”, que é transversal e se conecta com outras áreas do Direito e do conhecimento. In casu, inicia-se a série com a interpretação da aplicação “subsidiária” da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018). É que o artigo 61 do texto final do Projeto em sanção estabelece que “a proteção e o anonimato de dados pessoais dos participantes das pesquisas são regulados por esta Lei, aplicada subsidiariamente a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais)”. De fato, não será tarefa a ser concluída nesta oportunidade!
A LGPD instituiu um regime jurídico referente ao tratamento de dados pessoais no Brasil que é mais rigoroso quando se trata de dados pessoais sensíveis como os referentes à saúde. Busca-se, assim, minimizar riscos de violações à privacidade como também evitar tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos e vazamentos de informações que são sigilosas.
Portanto, o rol de hipóteses que legitimam o tratamento de dados pessoais sensíveis, do art. 11 da LGPD, modera o nível de discricionariedade por parte do controlador. A LGPD não impossibilita o tratamento de dados pessoais sensíveis para a realização de pesquisas com seres humanos. Pelo contrário, ela tem como um dos fundamentos, dispostos em seu art. 2º, V, o “desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação”.
De todo modo, o art. 61 do Projeto, se mantido, deve ser interpretado com parcimônia de modo a evitar violações à LGPD. É que a “subsidiariedade” não é um mecanismo de isenção de responsabilidades dos agentes de tratamento. Tampouco arrefece direitos do participante da pesquisa-titular de dados pessoais.
Por outro lado, a LGPD não pode ser interpretada a ponto de dificultar o recrutamento de potenciais participantes, impedir o acesso (seguro e sigiloso) por parte do monitor, do auditor aos dados de saúde do paciente-participante-titular, processos descritos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A atuação normativa, deliberativa, fiscalizadora e sancionatória da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) também deve preceder de ampla articulação com o Sistema Nacional de Ética em Pesquisas e com a Anvisa, com consultas públicas.
A “subsidiariedade” da LGPD deve ser interpretada no sentido de equilibrar os objetivos, fundamentos e princípios da LGPD com padrões éticos internacionais que regem a pesquisa globalmente, como, por exemplo, as “boas práticas clínicas”, internalizadas pelo Brasil na forma de Resoluções da Diretoria Colegiada da Anvisa. Relativamente à hipótese legitimadora para tratar dados pessoais nas pesquisas com seres humanos, o consentimento prevalece sobre o artigo 11, II “c” da LGPD e é soberano, considerada como sendo a mais adequada e segura desde o Código de Nuremberg, de 1947. A dispensa do consentimento, em qualquer caso, deverá estar justificada no protocolo e ser aprovada pelo CEP, mesmo em casos de emergência. Ainda assim, na primeira oportunidade possível, deve-se informar o fato ao participante da pesquisa ou a seu representante legal e coletar a decisão quanto à sua permanência no estudo.
Desta forma, consentimentos amplos, genéricos que permitam “possíveis usos futuros”, secundários ou com finalidades totalmente distinta da original devem ser escrutinados pelo CEP para evitar nulidades e violações à LGPD. E os agentes de tratamento, inclusive patrocinadores, não estão desobrigados pela ANPD no caso de tratamento irregular ou inseguro, podendo sofrer sanções.
Publicada a nova lei, haverá uma nova etapa. O próprio Sistema Nacional de Ética em Pesquisas precisa ser regulamentado por Decreto e caso isso não acontecer durante a vacatio legis, torna-se uma lei desdentada! Inseguranças causadas por lacunas a serem ainda regulamentadas podem resultar em judicialização, impasses. A nova lei é um importante avanço, mas precisará ser refinada de forma cuidadosa e, ao mesmo tempo, célere. A sua publicação, por si só, não será um milagre para o Brasil alcançar os investimentos e inovações prometidas.
[1]Disponível online: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9586930&ts=1715199288629&rendition_principal=S&disposition=inline>, p.5. Acesso em 09 mai. 2024.
[2]Disponível online: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9586930&ts=1715199288629&rendition_principal=S&disposition=inline>, p. 7. Acesso em 09 mai. 2024.