Em sessão ordinária de julgamento realizada no último dia 20 de março, o Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) reconheceu que as empresas Digesto e Jusbrasil formalizaram um ato de concentração antes do aval da autoridade, através da prática conhecida como gun jumping. Contudo, embora tenha disso observada a infração, o Tribunal do Cade deixou de aplicar a multa em razão de controvérsia razoável nos precedentes administrativos relacionados ao caso.
Trata-se de um veredito inédito em casos de gun jumping, e um reconhecimento, por parte do Tribunal do Cade, de elementos sui generis no caso da operação entre Jusbrasil e Digesto, mas principalmente de obscuridades em sua própria jurisprudência no tocante a operações envolvendo fundos de investimento.
Antes de adentrar as minúcias do caso que levaram ao julgamento em questão, é importante fazer alguns esclarecimentos sobre como funcionam os investimentos de venture capital, cada vez mais comuns no Brasil e principalmente em empresas de tecnologia, como é o caso de Jusbrasil e Digesto.
Investimentos de venture capital (ou VC) estão cada dia mais presentes no ecossistema brasileiro. Apesar do ano de “seca” que foi 2023, muito por conta da recessão e inflação global que atingiu o mundo após a pandemia de Covid-19, nota-se uma perspectiva de aceleração deste tipo de investimento para os próximos anos, inclusive para países da América Latina, que tendem a sofrer ainda mais os efeitos de uma recessão global e picos de inflação, agora em declínio.
Um dado relevante trazido pelo Relatório Anual de Digital Transformation publicado pela Atlantico é que a democratização da internet em países da América Latina cresceu vertiginosamente na última década (taxa de penetração de internet subiu de 43% para 78%). Além disto, os latino-americanos estão entre os principais usuários de internet do mundo (a título de exemplo, o brasileiro em média utiliza 9,3 horas de internet por dia vs. 7 horas por uma pessoa estadunidense). Tudo isto explica o motivo do “boom” de VC no Brasil, assim como traz perspectivas animadoras para o aumento consistente do ecossistema de inovação em nosso país, e consequente aumento de investimentos em startups brasileiras.
Ao contrário dos investimentos denonimados private equity, em que o grau de maturidade e consolidação da empresa investida é fator preponderante na decisão de aportar recursos na empresa, os investimentos de VC tendem a focar em empresas “jovens” ou com um grau de maturidade ainda a desenvolver. Não é incomum a realização de investimentos em empresas pré-operacionais, sem qualquer tipo de receita e muito menos um múltiplo atrativo de EBITDA (que muitos fundos de private equity tendem a considerar um dado chave no fator decisório do investimento).
Este tipo de investimento traz, obviamente, um grau de risco e incerteza maior, um dos motivos para que os aportes sejam feitos, na maioria das vezes, de forma minoritária, ou seja, sem a aquisição do controle da empresa alvo. E esse ponto, como veremos, é de fundamental relevância na discussão antitruste.
Outro fator que atrai fundos de VC é o time fundador (ou founding team). O time fundador precisa ter total autonomia para a tomada de decisões executivas e de negócios na velocidade que o ambiente de startups exige, assegurando que estejam na fronteira do conhecimento e à frente de outros players do mercado. E é também por isto que os investimentos de VC tendem a ter regras de governança específicas, onde apenas determinadas matérias “chave” passam pelo crivo do board ou dos investidores – as chamadas Protective Provisions.
Exemplos de tais matérias são: ingresso em uma nova área de negócios pela empresas ou a venda substancial de ativos da empresa, etc. Ou seja, matérias que de fato trariam um impacto direto aos Investidores, de forma que o seu “de acordo” seja necessário. Porém, a manutenção da tomada de decisões do dia a dia e até mesmo estratégicas continua com o time fundador.
Além do aporte de recursos em si, que é essencial, obviamente, o fundo de VC entra na empresa para elevar o seu grau de governança, ajudar na atração de novos talentos, trazer inputs de expertises setoriais que possam ter e até mesmo auxílio na operação do dia a dia.
Por isso é tão relevante uma maior clareza – da parte do Cade – de quais direitos minoritários ensejariam uma discussão sobre controle compartilhado para fins de notificação de operações à autoridade antitruste.
Uma leitura excessivamente ampla pode engessar esse dinamismo e movimento rápido, tão característicos de startups, e assim derrubar todo o conceito de VC. E não só isto, muito provavelmente desincentivaria qualquer time fundador a buscar aportes de fundos de VC.
Com isso em mente, o precedente em análise é paradigmático para a discussão sobre VC no Brasil exatamente porque coloca em debate a caracterização do controle societário para fins concorrenciais.
No momento da operação, o capital social de Jusbrasil estava distribuído, principalmente, entre três investidores institucionais que subscreveram participação societária – sendo modelo clássico de investimentos de venture capital, em “rodadas de investimento” sucessivas; e o time fundador da empresa. Considerando a estrutura de investimento adotada, nenhum dos seus acionistas controlava o Jusbrasil no momento da operação.
Por outro lado, o capital social de Digesto, no momento da operação, estava distribuído entre quatro pessoas físicas, que juntas concentravam 80% de participação, e um investidor minoritário institucional, que detinha os 20% restantes. Todos os acionistas de Digesto eram parte de um Acordo de Acionistas que regulava seus direitos políticos e econômicos, de forma que o investidor institucional, mesmo gozando de 20% de participação, não podia controlar a empresa.
A Superintendência-Geral do Cade entendeu que a operação seria de notificação obrigatória do Cade, com base numa interpretação ampliativa do art. 4º, § 2º[1] da Resolução Cade 33/2022, afastando a análise de controle comum e considerando automaticamente parte do grupo econômico a empresa na qual o fundo de investimento detenha participação de 20%.
O voto do conselheiro-relator Victor Fernandes, contudo, buscou consolidar os entendimentos jurisprudenciais do Cade sobre os parâmetros de notificação de atos de concentração envolvendo fundos de investimento e situações de controle compartilhado. Segundo o conselheiro, seguido por todos os demais membros do tribunal, esse esforço de sistematização cumpre a missão de publicizar esse debate, que, como será explicado a seguir, é tradicionalmente obscuro e oferece indicativos nebulosos ao mercado.
Ora, o controle compartilhado – ou “controle conjunto” – é aquele exercido por mais de um sujeito, seja através dos chamados “blocos de controle”, ou através do controle comum. Para o direito societário, o controle conjunto deve estar marcado pelas características essenciais do controle: a unicidade, generalidade, exclusividade e a estabilidade. Nesse sentido, não há que se falar de múltiplos controles que coexistem, mas sim em múltiplos agentes que, juntos, exercem o controle.
A despeito de não necessariamente coincidir com a disciplina do direito societário, é possível extrair, das decisões do Cade, alguma indicação sobre a existência de um “controle conjunto para fins concorrenciais”. Este desenvolvimento está presente, sobretudo, nos casos que discutem aplicação do art. 9º, parágrafo único, da Resolução nº 33[2], que exime de notificação ao Cade as aquisições realizadas pelo “controlador unitário”, indicando que aquisições de consolidação de controle somente seriam de notificação obrigatória quando implicassem mudança da estrutura do controle (i.e., de controle compartilhado para controle unitário ou vice-versa).
Importante destacar que estas decisões, em geral, fazem menção a disposições previstas nos documentos constitutivos das sociedades envolvidas (e.g., estatutos e contratos sociais), além de direitos políticos e econômicos atribuídos aos sócios em acordos de sócios e outros contratos parassocietários.
No entanto, em sua absoluta maioria, as decisões tratam o detalhamento de tais dispositivos e direitos como informações de acesso restrito, não divulgando aos agentes administrados e ao mercado como um todo quais disposições ou direitos embasaram o entendimento da autoridade e caracterização do controle. Dessa forma, sequer há de se falar propriamente em jurisprudência ou entendimento consolidado do Cade sobre este tema, na medida em que não há corpo coeso e consistente de decisões indicando de forma precisa a interpretação prevalente sobre o conteúdo material mínimo do conceito de controle compartilhado para fins da Resolução nº 33.
Isso significa que o “conceito concorrencial” de controle compartilhado é mais uma indicação de incerteza que prevalece sobre a interpretação do art. 4º, §1º, I da Resolução nº 33. As decisões do Cade que tratam do tema não detalham as disposições ou direitos que distinguem a posição de investidor não-controlador daquela do controlador. Exigir, portanto, um dever de notificação com base numa “jurisprudência oculta” da SG é uma sinalização negativa do Cade, que aumenta a insegurança jurídica e compromete o ambiente de negócios no Brasil.
A decisão final do Cade, que reconheceu a infração, sem aplicação da multa, e com indicativo de um aprofundamento da discussão de policy do Cade sobre o tema, representou verdadeira “solução salomônica” do tribunal, que manteve a estabilidade de sua jurisprudência, sem, contudo, penalizar as empresas pela falta de clareza sobre o seu próprio entendimento.
Não por outra razão, os conselheiros sinalizaram ser muito relevante um debate mais amplo e transparente sobre o assunto, que não apenas consolide o entendimento atual – como buscou fazer o relator – mas, do ponto de vista de política pública, debata qual deve ser o futuro dessa discussão. Ganham não apenas as partes envolvidas no caso, mas todo o mercado e o ambiente concorrencial no Brasil.
[1] In verbis: Art. 4º Entende-se como partes da operação as entidades diretamente envolvidas no negócio jurídico sendo notificado e os respectivos grupos econômicos.
1º Considera-se grupo econômico, para fins de cálculo dos faturamentos constantes do art. 88 da Lei nº 12.529/2011, cumulativamente:
I – as empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo; e
II – as empresas nas quais qualquer das empresas do inciso I seja titular, direta ou indiretamente, de pelo menos 20% do capital social ou votante.
2° No caso dos fundos de investimento, são considerados integrantes do mesmo grupo econômico para fins de cálculo do faturamento de que trata este artigo, cumulativamente:
I – O grupo econômico de cada cotista que detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 50% das cotas do fundo envolvido na operação via participação individual ou por meio de qualquer tipo de acordo de cotistas; e
II – As empresas controladas pelo fundo envolvido na operação e as empresas nas quais o referido fundo detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 20% do capital social ou votante.
[2] In verbis: Art. 9° As aquisições de participação societária de que trata o artigo 90, II, da Lei nº 12.529/2011 são de notificação obrigatória, nos termos do art. 88 da mesma lei, quando: I – Acarretem aquisição de controle, unitário ou compartilhado; II – Não se enquadrem no inciso I, mas preencham as regras de minimis do artigo 10. Parágrafo único. Não são de notificação obrigatória as aquisições de participação societária realizadas pelo controlador unitário.