Em abril de 2024, a organização Todos pela Educação divulgou um estudo que revela a existência de uma transformação profunda nas redes estaduais de ensino. Enquanto em 2013 as escolas estaduais contavam com 505 mil professores efetivos e 230 mil temporários, em 2023 este número passou para 356 mil temporários e 321 mil efetivos.
Totalizando efetivos e temporários, entre 2013 e 2023, houve uma redução de cerca de 58 mil docentes nas redes estaduais. Especialistas apontam como possíveis razões para o fenômeno, a queda do número de nascimentos no país, que leva à diminuição do número de matrículas na educação básica, e o aumento da municipalização da rede pública de ensino.
Contudo, o ponto que mais chama a atenção é, sem dúvida, o aumento expressivo do número de professores temporários. Muito embora a Constituição da República (art. 37, IX) preveja que as contratações temporárias somente podem ser feitas “para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, desde 2022, o número de professores temporários ultrapassa a quantidade de estatutários nas redes estaduais de ensino.
De acordo com o levantamento, 15 unidades da federação possuem mais professores temporários do que efetivos, sendo Minas Gerais o estado com maior percentual de temporários: 80%. Na casa dos 70%, tem-se Acre, Espírito Santo, Santa Catarina e Tocantins. Do outro lado do espectro, o Rio de Janeiro possui o maior percentual de efetivos (96%), seguido de perto por Bahia, Pará e Rio Grande do Norte, todos na faixa dos 90% de estatutários.
Mas por que isso ocorre?
É possível apontar dois grandes conjuntos de razões que levam ao crescimento da quantidade de professores – e, de modo geral, servidores públicos – temporários no Brasil. De um lado, tem-se questões gerenciais, relativas à demanda por flexibilidade na gestão de pessoas no setor público e continuidade de serviços públicos. De outro, questões políticas e fiscais, ligadas à pressão por maior controle das contas públicas, e até mesmo as preferências ideológicas de lideranças políticas.
Questões gerenciais: flexibilidade e continuidade do serviço
Demandas gerenciais em geral se relacionam a uma busca por maior flexibilidade na gestão de pessoas do setor público, emergindo como estratégia para suprir lacunas de alocação de pessoal e, principalmente, reduzir problemas de agência na administração por meio de um maior alinhamento de incentivos entre servidores-agentes e mandatários-principais.
A opção por outros tipos de vínculos para além do estatutário pode ocorrer para fugir de suas amarras, com o objetivo de trazer maior flexibilidade à movimentação numérica e funcional de pessoas no setor público, tornando possível o desligamento ou a transferência de agentes públicos para outras funções a partir das mudanças que naturalmente ocorrem nas necessidades do Poder Público.
De igual modo, há casos em que, não obstante existam lacunas na prestação do serviço, a realização de concurso público não é possível porque os cargos de provimento efetivo já estão preenchidos, mas os seus ocupantes encontram-se no gozo de licenças prolongadas, como licença-prêmio, licença-maternidade, licenças para estudo no exterior ou licenças não remuneradas para tratar de assuntos pessoais. Em designações mais afastadas ou, por algum motivo, pouco desejadas por servidores efetivos, essa escassez de funcionários de carreira pode acabar se tornando crônica, dependendo-se de maneira quase que permanente de agentes temporários para a prestação de serviços públicos.
Nessas hipóteses, a contratação por prazo determinado pode servir de anteparo contra a falta de pessoal permanente, bem como para garantir a continuidade de atividades administrativas em órgãos particularmente afetados pelo afastamento de servidores efetivos.
Questões políticas e fiscais
A ideia de que restrições de ordem financeira limitam a atuação estatal se faz bastante presente nos ideais do New Public Management. Com base nessas ideias, uma das vertentes da reforma administrativa realizada a partir do final da década de 1990 foi o estabelecimento e a ampliação de mecanismos de controle financeiro-orçamentário da Administração Pública.
Um dos principais pilares do sistema de austeridade que se desenvolveu no Brasil a partir desse período é a Lei Complementar nº 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A fim de trazer maior controle financeiro aos entes federativos nesse ponto em especial, a LRF impõe limites às despesas que os entes federativos podem ter com pagamento de pessoal. Como a violação de suas normas pode configurar crime de responsabilidade, os chefes do Poder Executivo não podem simplesmente deixar de observar suas disposições.
Por outro lado, o regime jurídico da função pública, especialmente o estatutário, tende a gerar pressões sobre os gastos públicos. Embora a questão não seja unânime, estudos apontam que, entre 2003 e 2016, os gastos da União com pagamento de servidores federais ativos, inativos e pensionistas cresceram 56%[1]. Em 2015, 13,1% do PIB do país se destinava a despesas com servidores ativos, inativos e pensionistas, percentual próximo ao da França (12,9%), mas consideravelmente superior ao da Alemanha (7,5%) e do Chile (6,4%)[2].
Isso ocorre, em primeiro lugar, devido à previsão constitucional de um regime próprio de previdência aplicável aos servidores estatutários que, embora já tenha passado por diversas alterações desde a redação originária da Constituição de 1988, no geral ainda possui regras mais benéficas do que o regime geral de previdência social. Em termos numéricos, em 2017, cerca de 50% das despesas públicas com pessoal já correspondiam a benefícios previdenciários[3].
Além disso, a jurisprudência dos tribunais superiores sobre servidores públicos com frequência contribui para o agravamento das pressões financeiras do regime estatutário. É o caso, por exemplo, foi o julgamento do Recurso Especial nº 1.878.849 (Tema nº 1.075 dos Recursos Repetitivos), no qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou ilegal a não concessão de progressão funcional a servidor público quando atendidos todos os requisitos legais, a despeito de superados os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, já que a progressão seria direito subjetivo do servidor.
Mesmo entes que sofrem com despesas de pessoal muito próximas dos limites legais, enfrentam demandas pela expansão e continuidade de serviços públicos. Espremidos entre austeridade fiscal e demandas quase infinitas, gestores públicos desenvolvem soluções que buscam assegurar o atendimento à população sem violar frontalmente as normas da LRF. Nesse cenário, ganham espaço as contratações de espécies de agentes públicos menos custosas para os cofres públicos do que o regime estatutário, em especial os temporários.
Com frequência, as leis que disciplinam as contratações temporárias asseguram remunerações mais baixas, menor proteção no emprego e menos benefícios aos funcionários temporários. Além disso, esses trabalhadores não terão vínculos previdenciários futuros com o Poder Público, diferentemente dos servidores de carreira, os quais são segurados do regime próprio de previdência social, que costuma contar com regras mais protetivas do que o regime geral[4].
Por fim, no atual contexto de acentuada polarização política no país, é natural que assuntos envolvendo servidores públicos não fiquem de fora dessa divisão, uma vez que estão diretamente ligados ao tamanho do Estado e ao grau desejado de intervenção do poder público no domínio econômico.
Enquanto autores mais liberais enfatizam as anomalias do regime público e defendem a desestatização de atividades e a adoção de vínculos de trabalho menos protetivos no setor público como soluções para essas distorções, outros, por vezes de espectro ideológico mais estatizante, destacam aspectos positivos do regime público e possíveis problemas que a privatização traz à tona, especialmente a precarização. Assim, a opção pela contratação temporária pode, ainda, derivar de preferências de lideranças políticas[5].
Conclusão
Entre motivos diversos, é indiscutível que as contratações temporárias vêm aumentando consideravelmente em todo o país. Se, de um lado, o fenômeno demonstra as insuficiências do regime estatutário para atender integralmente às demandas hoje existentes na gestão de pessoas no setor público, por outro, revela a urgência de que as contratações por prazo determinado sejam pensadas de maneira global e nacionalmente estruturada, a fim de evitar a precarização da situação funcional desses agentes e das atividades públicas que eles desempenham.
A edição de lei geral, de caráter nacional, que delimite contornos para as hipóteses constitucionalmente autorizadas de contratações por prazo determinado e o regime jurídico dos servidores temporários pode ser um primeiro passo para organizar a casa.
[1] ABRÃO, Ana Carla; FRAGA NETO, Armínio; SUNDFELD, Carlos Ari. A Reforma do RH do Governo Federal. Série Panorama Brasil. Oliver Wyman. Disponível em: <https://www.oliverwyman.com/content/dam/oliver-wyman/brazil/A-Reforma-Do%20Rh-Do-Governo-Federal.pdf> Acesso em 27.Jan.2022. O Atlas do Estado Brasileiro traz um número parecido para o crescimento das despesas com servidores ativos em todas as esferas de governo, na faixa dos 59% no mesmo período (Vide: <https://www.ipea.gov.br/atlasestado/consulta/95>. Acesso em 30.Mar.2022). Outros, porém, apontam para uma tendência de estabilidade nos gastos com servidores ativos. Vide: LOPEZ, Félix; CARDOSO JUNIOR, José Celso. Cadernos da Reforma Administrativa. Caderno 4: a verdade sobre os números do emprego público e o diferencial de remunerações frente ao setor privado no Brasil. Brasília: FONACATE, 2020, p. 12.
[2] ABRÃO, Ana Carla; FRAGA NETO, Armínio; SUNDFELD, Carlos Ari. A Reforma do RH do Governo Federal. Série Panorama Brasil. Oliver Wyman. Disponível em: <https://www.oliverwyman.com/content/dam/oliver-wyman/brazil/A-Reforma-Do%20Rh-Do-Governo-Federal.pdf> Acesso em 27.Jan.2022. O Atlas do Estado Brasileiro, porém, traz um dado diferente: no ano de 2015, o documento aponta um gasto de 10,28% do PIB brasileiro com o custeio de servidores públicos ativos. Vide: < https://www.ipea.gov.br/atlasestado/consulta/95> Acesso em 30.Mar.2022.
[3] ABRÃO, Ana Carla; FRAGA NETO, Armínio; SUNDFELD, Carlos Ari. A Reforma do RH do Governo Federal. Série Panorama Brasil. Oliver Wyman. Disponível em: <https://www.oliverwyman.com/content/dam/oliver-wyman/brazil/A-Reforma-Do%20Rh-Do-Governo-Federal.pdf> Acesso em 27.Jan.2022.
[4] NOGUEIRA, Roberto Passos. CARDOSO JUNIOR, José Celso. Tendências e Problemas de Ocupação no Setor Público Brasileiro: conclusões parciais e recomendações de pesquisa. In: CARDOSO JUNIOR, José Celso (org.). Burocracia e Ocupação no Setor Público Brasileiro. Vol. 5: Diálogos para o Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2011, pp. 415-442, p. 424.
[5] ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Burocracia e Ordem Democrática: desafios contemporâneos e experiência brasileira. In: PIRES, Roberto. LOTTA, Gabriela; OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Burocracia e Políticas Públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: IPEA/ENAP, 2018, pp. 23-58, p. 23.