A PEC 10/2023, que recria a figura dos quinquênios da administração pública brasileira, é um grave equívoco político e técnico. Segundo a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, a proposta custará mais de R$ 40 bilhões por ano aos cofres públicos.
Esse recurso permitiria que o Brasil dobrasse a qualidade da educação para mais de 2 milhões de estudantes, ou da saúde para mais de 8 milhões de brasileiros, considerando que o país gasta anualmente R$ 18 mil com cada estudante e R$ 5.000 com a saúde de cada pessoa. É ainda mais preocupante quando acabamos de ver o governo federal cortar mais de R$ 4 bilhões que seriam destinados à saúde, educação, ciência e tecnologia.
E o impacto financeiro não é o único problema da proposta. Ela beneficia cerca de 32 mil funcionários de um total de mais de 10 milhões existentes no Brasil, reforçando o benefício para um grupo de agentes públicos que já detém os salários mais elevados do setor. Esse fenômeno não só amplia as desigualdades remuneratórias, mas também esbarra na discussão recente sobre super salários.
O teor da PEC 10 perpetua discrepâncias salariais significativas entre os Poderes e carreiras dentro do serviço público, aumentando a desigualdade, intensificando distorções e promovendo um desalinhamento ainda maior entre o sistema de remuneração dos servidores e o seu respectivo desempenho e produtividade.
Sem dúvida essa não é a melhor forma de promover capacidades e valorizar os agentes públicos. Ela fere princípios básicos e modernos da boa administração pública. Enquanto todas as discussões de fronteira defendem uma progressão salarial e de carreira, alinhada ao desempenho e não por tempo de serviço, a PEC 10 vai justamente na direção contrária.
A discussão relacionada à reorganização das carreiras, cargos e remunerações deve estar atrelada à complexidade relativa das ocupações e aos parâmetros remuneratórios do mercado de trabalho no Brasil. Qualquer tipo de ajuste salarial deve ser feito em linha com melhorias em várias outras questões de políticas de gestão de pessoas, tais como seleção, desenvolvimento e gestão de desempenho que considere a qualidade dos serviços públicos prestados, o que sabemos que temos muito ainda a desenvolver e melhorar em nosso país.
Nesse sentido, os argumentos acima caracterizam as questões técnicas que estão por trás dessa discussão. Esse caminho não é cabível uma vez que desorganiza ainda mais o sistema de carreiras. O sistema de carreiras é a forma como o trabalho de profissionais da gestão pública é organizado para que eles desempenhem bem. Atrelados a isto estão remunerações, incentivos, dentre outros. Em um serviço civil organizado as carreiras e cargos refletem as ocupações, e as remunerações refletem suas valias relativas (exemplo: quanto vale o trabalho de um juiz e de um médico na rede pública?) no mercado de trabalho.
Nosso serviço civil é muito desorganizado. As carreiras não refletem as ocupações, refletem organizações. Há ocupações idênticas que recebem remunerações díspares em diferentes carreiras.
Há carreiras sobrevalorizaras e outras subvalorizadas. A valorização está mais atrelada a uma senioridade de tempo de serviço e não ao desempenho. E um serviço civil desorganizado é disfuncional, não desempenha, não entregas serviços e políticas, não gera valor público e não promove a melhoria do gasto.
Somado a isso, o Senado deveria combater o arbítrio político e resguardar os direitos fundamentais da população. Entretanto, a proposta aprovada na CCJ vai na direção oposta e afronta diretamente o princípio constitucional da eficiência.
A proposta aponta um caminho perigoso para um país que, segundo dados do Índice de Capacidades Institucionais da Fundação Dom Cabral, já perde cerca de R$ 926 bilhões com a baixa qualidade dos gastos públicos. O governo brasileiro funciona de forma menos eficiente do que todos os outros países que fazem parte da sua categoria ou estão acima dela.
Essa proposta piora ainda mais uma situação para a qual não há mais espaço de deterioração. O Brasil precisa urgentemente ampliar a capacidade de suas instituições, melhorar a qualidade do gasto público, focar na melhoria da entrega de resultados para a sociedade.
As demandas da sociedade são ilimitadas, os recursos são cada vez mais escassos e esses R$ 40 bilhões deixarão de ser investidos em políticas públicas finalísticas para beneficiar uma pequena parcela do serviço público.
Para tornar a situação ainda mais danosa à população, a proposta nem sequer detalha de onde virão esses R$ 40 bilhões. Isso fere princípios orçamentários e ordenamentos claros da Lei de Responsabilidade Fiscal, que em seu artigo 17, parágrafo 1º diz que os atos que criarem ou aumentarem despesa deverão demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.
Uma outra questão de suma importância é que esse movimento abre um precedente perigoso, pois, assim como já está acontecendo com a inserção de carreiras inicialmente não contempladas, a tendência é que todas as carreiras de todos os níveis (federal, estadual e municipal) pleiteiem também esse benefício, gerando um efeito em cascata que poderia inviabilizar financeiramente o governo brasileiro.
Por fim, a criação de privilégios remuneratórios para uma parcela de servidores públicos, no momento em que o país se defronta com graves problemas sociais, de segurança pública, educação e saúde afeta negativamente a imagem dos agentes públicos, deslegitima o Estado e desestimula a coesão social.