Copa v Wright: propriedade intelectual e blockchain

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Na primeira década do século 21, nasceu uma ideia revolucionária que desafiaria as fundações do sistema financeiro global. Sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto, um manifesto foi lançado, delineando a criação de uma nova forma de moeda, o bitcoin. A moeda não seria como as moedas convencionais, sujeitas à vontade de governos e bancos centrais, mas uma entidade descentralizada, operando em uma rede peer-to-peer, imune à inflação e à corrupção.

A proposta também impulsionou o advento da tecnologia que seria sua espinha dorsal: a blockchain. Essa inovação, uma cadeia contínua de blocos de informações ligados e protegidos por criptografia, provou ser revolucionária, estendendo seu impacto para muito além das fronteiras do bitcoin e das criptomoedas

Mas poderia ser possível que tal mistério estivesse próximo de ser solucionado (ou não) dentro dos tribunais. Craig Wright, uma figura polarizadora no mundo das criptomoedas, afirmou ser Nakamoto. Suas alegações geraram controvérsia e ceticismo na comunidade. Ele registrou os direitos autorais nos EUA para o white paper do bitcoin e o código-fonte original, alegando ser o único autor, levantando preocupações na comunidade de criptomoedas sobre possíveis ações judiciais contra desenvolvedores, investidores e usuários da tecnologia blockchain.

Por essa razão, a Crypto Open Patent Alliance (Copa), uma aliança de empresas do setor de criptomoedas, ajuizou uma ação contra Craig Wright (Copa v Wright Others 2023 EWHC 3287). O cerne da disputa é a afirmação de Wright de ser Satoshi Nakamoto e, por extensão, deter a propriedade intelectual sobre o bitcoin e, sobretudo, sua tecnologia subjacente, a blockchain. O pedido final consistiu na declaração de nulidade sobre os direitos de propriedade intelectual de Wright sobre o white paper do bitcoin. 

Após uma decisão inicial favorável à Copa, determinou-se que Wright não poderia mais alegar direitos sobre o white paper original do bitcoin ou sobre o código-fonte original. Tal decisão marca um momento crucial no caso, confirmando que Wright não é o inventor do bitcoin e não detém os direitos autorais sobre o white paper. Essa vitória é interpretada como um triunfo para a Copa e para desenvolvedores de código aberto.

Diante dessa disputa, surgem apreensões relacionadas à propriedade intelectual e ao futuro da blockchain. Teria o titular dos direitos autorais do white paper a capacidade de invalidar todas as patentes relacionadas à blockchain? Poderia ele solicitar uma patente para si? Quais são os riscos, caso Nakamoto seja reconhecido e reivindique os direitos autorais? Como isso afetaria a governança e o desenvolvimento de tecnologias baseadas em blockchain?

 Buscando lançar luz sobre esses pontos, exploraremos a definição de patente e a importância da Copa nesse contexto, assim como a proteção garantida pelas leis de direitos autorais ao white paper e ao código-fonte. Além disso, discutiremos o impacto do não exercício da exclusividade ao longo do tempo.

Uma patente é um direito concedido pelo Estado a um inventor, garantindo-lhe o direito exclusivo de explorar comercialmente sua invenção por um período determinado. A Copa busca remover patentes que representam barreiras ao crescimento e à inovação na criptoeconomia, promovendo uma estratégia de patentes abertas que garanta que as tecnologias de criptomoedas permaneçam acessíveis a todos. 

No contexto das patentes, é crucial lembrar que dois dos critérios fundamentais para a concessão são a novidade e a atividade inventiva. A novidade requer que a invenção não seja conhecida publicamente antes do pedido de patente, enquanto a atividade inventiva diz respeito à capacidade da invenção de não ser óbvia para um técnico no assunto. Ao avaliar esses critérios, o examinador de patentes considera todo o conhecimento disponível no momento da solicitação.

Nakamoto não poderia mais solicitar uma patente para uma invenção já revelada em seu white paper e/ou código-fonte de 2008, uma vez que essa invenção não seria considerada nova. Portanto, a possibilidade de proteção por patente para o bitcoin original de 2008 é descartada.

As patentes atualmente em vigor, que representam avanços da tecnologia originalmente revelada no white paper e código-fonte original, foram concedidas sem que os documentos de Nakamoto tenham sido identificados como impedimentos de forma conclusiva. Assim, independentemente de uma reivindicação bem-sucedida de autoria, as patentes permaneceriam inalteradas.

É importante salientar, no entanto, que a patente não é a única forma de proteção disponível para as criações de Nakamoto, o que acarreta alguns riscos a serem considerados. O direito autoral incide sobre a expressão, protegendo artigos, obras literárias e códigos-fonte, independente de solicitação ao Estado. Com o reconhecimento da autoria, o titular dos direitos autorais do white paper e código-fonte original teria um  direito de exercer sua exclusividade. 

A proteção oferecida pelo direito autoral se aplica à forma, e não necessariamente à funcionalidade contida. Portanto, os direitos autorais não confeririam proteção ao uso efetivo de uma determinada tecnologia em si, ao contrário das patentes, onde a proteção está diretamente ligada à utilização e exploração do invento protegido.

O detentor do white paper poderia restringir sua divulgação e reproduções, limitando a disseminação do conhecimento ali contido. Além disso, poderia impedir a reprodução do código-fonte original, mesmo que em parte, o que é crucial para o contínuo desenvolvimento da tecnologia. Essas restrições são fundamentais para entender as medidas já tomadas por Craig Wright, que enviou notificações a sites que hospedam o white paper de Nakamoto, exigindo sua remoção e a diversos desenvolvedores de diferentes portes, alegando o uso indevido de sua propriedade intelectual.

Antes de sucumbir ao temor antecipado em caso de reversão da decisão judicial inicial que não reconheceu a reivindicação de Craig, convém considerar os possíveis efeitos do passar do tempo. A omissão da autoria do white paper por parte de Nakamoto ao longo dos anos pode acarretar implicações legais significativas, como surectio e supressio.

Surectio refere-se ao princípio pelo qual, ao permanecer em silêncio ou não fazer valer um direito por um período significativo, presume-se que a parte tenha renunciado a esse direito. Supressio diz respeito à ideia de que a parte não pode, posteriormente, invocar um direito que ela mesma negligenciou anteriormente. 

Logo, mesmo que a verdadeira identidade de Nakamoto seja revelada, é improvável que o indivíduo, seja ela Wright ou não, possa exercer um direito exclusivo absoluto sobre o bitcoin ou a tecnologia blockchain. Não se pode ignorar, contudo,  que o eventual titular dos direitos autorais dos documentos de Nakamoto pode vir a representar um obstáculo a ser enfrentado pelos desenvolvedores e toda a criptoeconomia.

Embora a decisão inicial do tribunal inglês tenha sido favorável à Copa, afirmando que Craig Wright não detém os direitos sobre o white paper e o código-fonte originais do bitcoin, o desenrolar dessa saga ainda está longe de um desfecho definitivo. As implicações legais e tecnológicas de uma eventual reivindicação bem-sucedida por parte de Craig Wright são vastas e complexas, envolvendo desde o direito de propriedade intelectual até os limites da governança descentralizada. Independentemente do resultado, é imperativo que a comunidade de criptomoedas e os desenvolvedores permaneçam vigilantes e engajados.