O que deveria ser um debate crucial para a jurisprudência nacional rapidamente se transformou em um espetáculo nas redes sociais, e agora se candidata a virar uma bandeira ideológica duradoura sequestrada pela polarização. Neste cenário de maniqueísmo ideológico, a batalha se dá entre heróis e vilões: de um lado, o bastião da liberdade contra o grande censor; do outro, o defensor da democracia frente ao bilionário extremista. Em meio à guerra de narrativas, reconhecer a validade em qualquer argumento do lado oposto torna-se um ato de traição. Entre ânimos acirrados, qualquer progresso necessitará de um acordo mínimo sobre três pontos: transparência, capacidade estatal e fórum de debate.
Como primeiro movimento, a transparência nas ações judiciais, assim como nas práticas das empresas, deveria ser um acordo fácil. A dificuldade em justificar jurídica e operacionalmente a opacidade das medidas adotadas fortalece extremos de ambos os lados.
Mesmo defensores do ministro Alexandre de Moraes concordam que a falta de transparência tem minado a legitimidade das suas medidas e alimenta acusações de censura. A transparência protege as instituições de questionamentos e transfere o ônus argumentativo às empresas. Ao mesmo tempo, um choque de transparência obrigaria as empresas a uma resposta equivalente sobre suas regras e práticas, tirando fôlego dos discursos inflamados e paixões de ambos os lados.
O segundo acordo parte do reconhecimento de que este desafio não é exclusivo do Brasil, mas parte de uma transição global do papel dos governos na era digital. Nesse contexto, é preciso abandonar a visão do Estado como o juiz do clássico de futebol. Os governos devem agir como reguladores de segundo plano, definindo princípios éticos e legais para que as plataformas operem de maneira justa e transparente. A estas cabe a tarefa de traduzir esses princípios em regras práticas, direitos e deveres dos usuários.
Ao Estado sempre caberá a tarefa última de monitorar a conformidade entre os princípios e sua implementação. Nesta tarefa de fiscalização não deve faltar a mão forte do Estado e as plataformas devem ser responsabilizadas de acordo com a importância e tamanho do negócio que operam.
Porém, a discrepância entre a capacidade da justiça e o volume de interações até mesmo da menor das redes sociais faz com que qualquer tentativa de endereçar casos isolados em detrimento das regras gerais resulte em decisões enviesadas e parciais. A justiça sempre se preocupará com casos concretos, porém deve fazê-lo com o objetivo de esclarecer normas e corrigir práticas, e não de transformá-los em exemplos. O foco nas regras e algoritmos é o caminho para garantir a adequação das plataformas ao nosso arcabouço institucional.
Finalmente, embora a tecnologia adicione uma aura de modernidade, o dilema é antigo. Os primeiros pensadores da democracia já debatiam o paradoxo de decisões democráticas que poderiam ameaçar a democracia. Aqui nos guiam de um lado os limites impostos pelos direitos fundamentais e do outro procedimentos alternativos capazes de garantir representatividade democrática sem recorrer às maiorias.
Essa necessidade de equilibrar direitos fundamentais e procedimentais sugere um terceiro ponto de acordo: a importância de transferir o debate para um fórum mais adequado. Esse tema não se esgotará com nenhum projeto de lei ou decisão judicial. A solução de problemas complexos se dá na implementação, o que exige um colegiado perene, plural, com a participação dos três Poderes e liderado pelo Executivo. O fórum adequado permite incorporar o acúmulo das discussões do Congresso, assim como limitar os arroubos antidemocráticos pelos quais a direita brasileira tem tomado gosto, sem cair num vale-tudo judicial. Isso ajudará a desescalar o conflito e a focar no debate técnico e produtivo.
Como nação, devemos decidir se seremos apenas consumidores de tecnologias e polêmicas ou líderes na construção de ecossistemas tecnológicos vibrantes. A crise atual é mais uma oportunidade que arriscamos perder para estabelecer uma liderança global na regulamentação digital.