Quanto se passa na vida de uma pessoa ao longo de 20 anos? Para os filhos de Antonio Tavares, trabalhador rural assassinado pela Polícia Militar em um protesto em prol da reforma agrária no ano de 2000, no Paraná, a vida estava em suspenso.
Em 2024 completam-se 24 anos do violento episódio ocorrido em Campo Largo, o qual se insere num contexto de intensa violência no Paraná, em que, entre 1994 a 2002, ocorreram 16 assassinatos, 470 prisões de trabalhadores rurais e 134 despejos violentos de trabalhadores sem-terra, segundo a Comissão Pastoral da Terra[1].
Na data, 2 de maio de 2000, cerca de 2.000 camponeses(as) de todo o Paraná rumavam a Curitiba para reivindicar a realização da reforma agrária, o acesso a políticas públicas e o fim dos despejos ilegais e violentos que vinham ocorrendo. Contudo, foram interceptados por uma megaoperação policial, ordenada pelo então governador Jaime Lerner, que parou os ônibus e, através de forte aparato policial e uso de violência moral e física, impediu que os manifestantes seguissem rumo à capital. Não houve confronto, mas um verdadeiro massacre.
Vitimado por tiros de arma de fogo de um policial, Antonio Tavares morreu sem ter recebido socorro médico a tempo. Mais de 200 trabalhadoras e trabalhadores rurais Sem-Terra ficaram feridos e diversos outros ficaram desaparecidos por dias, tendo fugido da violência pelas matas à margem da estrada. Os eventos ficaram lembrados como “Massacre da BR-277” e, em decorrência da falta de investigação adequada e de responsabilização dos envolvidos, o caso foi levado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e recebeu o nome do trabalhador assassinado, Antonio Tavares Pereira e outros v. Brasil.
A sentença da Corte Interamericana neste caso, publicada em 14 de março deste ano, traz obrigações importantes ao Brasil, reconhecendo a responsabilidade do Estado em diversas violações à Convenção Americana. Dentre elas: reparações a família de Antonio Tavares e as centenas de feridos(as); inclusão sobre o tema das manifestações públicas na formação dos agentes de segurança pública do Estado; proteção ao monumento Antonio Tavares na BR-277 e a reforma legal sobre a Justiça Militar no Brasil.
Não é, porém, a primeira sentença da Corte relativa a violência contra trabalhadores rurais Sem-Terra. Somente no Paraná houve também o Caso Arley José Escher e outros, relativo à interceptação telefônica ilegal de linhas telefônicas de cooperativa de trabalhadores ligada ao MST, ocorrida em 1999, e o Caso Sétimo Garibaldi, trabalhador rural Sem-Terra assassinado em novembro de 1998 em ação violenta de despejo realizado em Querência do Norte[2].
Alguns temas devem ser analisados atentamente neste caso, pois trazem algumas mudanças para nosso ordenamento jurídico: a Justiça Militar, o Direito à Memória e Direito à Manifestação dos defensores/as de Direitos Humanos.
Justiça Militar e a impunidade contra defensores e defensoras de direitos humanos
Apesar das condenações pretéritas, o Brasil ainda não avançou em mecanismos capazes de superar de maneira estrutural a violência no campo e a violência policial. Neste caso, como em tantos outros, o tema da impunidade nas violações de direitos humanos contra defensores e defensoras de Direitos Humanos se apresenta como regra quando do envolvimento dos agentes de segurança pública, sobretudo policiais militares. Uma das obrigações do Estado brasileiro trazida na sentença da Corte IDH é, assim, a adequação do ordenamento brasileiro relacionado à competência da Justiça Militar para que esta deixe de julgar casos quaisquer delitos – inclusive mortes – perpetrados por militares contra civis.
Importante recordar que, desde o período de redemocratização, com a nova Constituição Federal de 88, ainda convivemos com a permanência de resquícios de uma ideia da Justiça Militar dos tempos do início da República. O debate sobre a limitação do escopo e do alcance da Justiça Militar se insere no diálogo dirigido à reestruturação das instituições democráticas e à construção de novos laços de confiança no Estado, sob a perspectiva reconciliatória da Justiça Transicional, porque o alargamento da competência se estruturou precisamente para atender as necessidades políticas do regime militar instaurado em 1964.
Na ótica dos direitos humanos, a Emenda Constitucional 45/2004 alterou o artigo 125, § 4, da Constituição Federal de 1988, transferindo a competência a competência da Justiça Militar estadual para o Tribunal do Júri quando a vítima for civil. Porém, ainda ocorre a instauração de inquéritos policiais militares, afetando a verificação da responsabilidade dos policiais militares nestes crimes, pois em quase sua totalidade se procedem os arquivamentos destas investigações, devido à parcialidade dos entes envolvidos, uma vez que que é investigado na Justiça Militar por seus pares por um foro restritivo, funcional e excepcional.
Importante ressaltar que, no âmbito internacional, já está pacificada a posição que a manutenção da Justiça Militar para estes casos que envolvem civis são contrários aos parâmetros de direitos humanos, tanto na Corte Interamericana de Direitos Humanos[3] quanto em diversos documentos da ONU[4]. Como bem demonstra a Corte Interamericana neste caso, isto viola o direito às garantias judiciais, quanto aos princípios do devido processo legal, independência e imparcialidade.
Porém, em 2017 com a aprovação da Lei 13.491/2017, que alterou o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, temos novamente a instauração da incongruência da investigação dos crimes contra civis por militares pela Justiça Militar. No mesmo ano, foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade 5804 no Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil. Ainda não há uma decisão, porém, espera-se da nossa corte constitucional o seu alinhamento com as decisões já proferidas no âmbito da Corte Interamericana quanto à incompetência da Justiça Militar para averiguar delitos contra civis, realizando, com isso, o devido controle de convencionalidade das normas internas.
Da memória como um direito humano
Outro ponto importante na sentença se refere ao Monumento Antonio Tavares, erigido às margens da BR-277, no local do assassinato, tendo sido projetado por Oscar Niemeyer e construído pelos trabalhadores vítimas. Após ter sido informada da ameaça de remoção do monumento, a Corte Interamericana decidiu pela adoção de todas as medidas adequadas para protegê-lo de maneira efetiva e definitiva no local em que está edificado. Isto inclui eventual necessidade de restauração, manutenção e limpeza do monumento e seu entorno, bem como garantia de acesso público.
Antes da sentença final do caso, o monumento já havia sido objeto de proteção pela Corte por meio de medidas provisionais, que em regra são destinadas a previnir ameaças a vida de defensores e defensoras de direitos humanos. Assim, a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos do artigo 63.2[5] da Convenção ampliou as possibilidades da proteção das medidas provisórias. Entendendo que, mesmo se tratando de um bem material, a sua destruição poderia “afetar, de forma grave, a integridade moral e psíquica das supostas vítimas e seus familiares, causando-lhes um dano irreparável.”
Na linha da reparação integral às vítimas de violações de direitos humanos, a proteção a este monumento reflete a ideia da representação da memória de um grupo, da luta por direitos humanos – neste caso pela terra e reforma agrária – com protagonismo daqueles que sofreram a violência. Ao invés de um pedido de construção de um monumento por parte do Estado, temos assim o reconhecimento da vontade de memória do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra de depositar naquele local a simbologia do que consideram “um dos momentos mais emblemáticos no processo de violência e criminalização da luta pela terra“ e pelo potencial de ser um instrumento pedagógico cultural de educação em Direitos Humanos.
De maneira significativa, a Corte Interamericana também determina a manutenção do monumento onde se encontra, local dos fatos, ampliando o alcance dos instrumentos jurídicos de proteção de patrimônio cultural existentes no ordenamento jurídico brasileiro, como o tombamento, que não necessariamente impedem a possibilidade de remoção do bem para outro local, neste caso por estar localizado em propriedade privada. Nesta linha, a sentença reforça a ideia de que não há justiça sem memória.
Defesa de direitos humanos e o direito à manifestação
Por fim, como vimos, o Caso Antonio Tavares v. Brasil se insere num contexto de forte estigmatização contra trabalhadoras(es) rurais sem-terra e de diversas violências cometidas por agentes privados e públicos, visando desencorajar o engajamento coletivo na defesa de direitos e obrigações previstos na Constituição, como a realização da reforma agrária.
A manifestação pública é uma das importantes formas de reivindicação de direitos. A CorteIDH reconhece, assim, as inúmeras violações ao direito à manifestação ocorridas no caso e afirma que “os Estados têm a obrigação positiva de facilitar a manifestação pacífica do protesto, garantindo aos manifestantes o acesso ao espaço público”, e que isto é especialmente importante em relação às manifestações organizadas por grupos sociais ou populações marginalizadas, particularmente excluídos do debate público. Aponta ainda que há uma série de protocolos a serem observados pelas forças de segurança para não haver violência contra manifestantes e para que seja respeitado seu direito à manifestação pacífica.
De modo geral, não só em protestos, o uso da violência como arma para intimidar e suspender a atuação de pessoas e grupos que atuam na defesa da efetivação dos direitos civis, políticos, sociais, culturais, econômicos e ambientais é, infelizmente, frequente. O Brasil é um dos países que mais mata defensores de direitos humanos no mundo. Uma Pesquisa das organizações Terra de Direitos e Justiça Global identifica que a grande maioria das ameaças contra defensoras e defensores de direitos humanos (83%) se dá nos casos de defesa do direito à terra, território e meio ambiente.
Assim, a sentença da Corte Interamericana, ao trazer elementos de reparação material e simbólica, bem como determinando alterações significativas na forma como o Brasil (não) enfrenta a impunidade, busca dar também um sinal em prol do direito a reivindicar direitos humanos.
[1] COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT/PR). Desterro: uma cronologia da violência no campo no Paraná na década de 90. Curitiba, 2006.
[2] Corte IDH. Caso Garibaldi vs. Brasil, 23 de setembro de 2009, Sentença. Corte IDH. Caso Escher e outros vs. Brasil. 06 de julho de 2009, Sentença.
[3] Cf. Caso Durand e Ugarte Vs. Peru. Mérito. Sentença de 16 de agosto de 2000. Série C Nº 68, par. 117, e Caso Casierra Quiñonez e outros Vs. Equador. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 11 de maio de 2022. Série C Nº 450, par. 148.
[4] GUTIERREZ, Juan Carlos; CANTÚ, Silvano. A restrição à jurisdição militar nos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. SUR, v. 7, n. 13, dez. 2010, p.75-97.
[5] “[e]m casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes”