Diante da complexidade do sistema tributário brasileiro e da importância das receitas tributárias para alcance de metas estipuladas pelo governo, o princípio da anterioridade vem se mostrando um dos principais aliados dos contribuintes contra investidas surpresas do fisco.
Previsto no artigo 150, III, “b” e “c”, da Constituição, o princípio determina que o aumento de tributos (ou a instituição de nova exação) está sujeito ao prazo de, no mínimo, noventa dias, podendo chegar a um exercício fiscal completo, comportando algumas poucas exceções relativas aos tributos considerados como extrafiscais.
Por se tratar de garantia que limita o poder de tributar, a anterioridade historicamente foi interpretada pelos tribunais de forma literal, aplicando-se estritamente para as situações de criação de novo tributo ou majoração do valor cobrado a título de alguma exação já instituída.
A criação de novos tributos não foi alvo de tantos debates por se tratar de situação objetiva, porém a expressão “aumento de tributo” utilizada pela Constituição como gatilho para a anterioridade resultou em amplos questionamentos, tendo a sua interpretação evoluído com o tempo.
A primeira geração interpretativa do princípio da anterioridade está apoiada principalmente no aumento direto e nominal do tributo a ser pago pelo contribuinte, o qual deveria ocorrer, portanto, mediante a majoração de sua alíquota ou, então, do alargamento da sua base de cálculo.
Ou seja, quando a alíquota do tributo era majorada de, por exemplo, 10% para 15% ou, então, quando a incidência desta alíquota deixava de ser sobre uma base de cálculo “x” para incidir sobre “x + y”.
O posicionamento fica muito claro no julgamento do RMS 10.937/RO pelo STJ, oportunidade em que entendeu o seguinte:
O aumento da carga tributária se faz direta ou indiretamente. No primeiro caso, por imposição de tributo novo ou aumento da alíquota; no segundo, mediante ampliação da base de cálculo, desde que obedecido o princípio da anterioridade.[1]
Ocorre que a limitação da incidência da regra da anterioridade aos casos de aumento direto da alíquota ou base de cálculo acabou por excluir da abrangência da garantia das revogações de benefícios fiscais, situações que sempre se mostraram rotineiras na relação fiscal e que deveriam estar protegidas pelo princípio (que visa, como se sabe, a proteger o contribuinte de mudanças abruptas no valor das obrigações tributárias a que está sujeito em um determinado exercício financeiro).
A orientação jurisprudencial era clara: a anterioridade se aplica para majoração do tributo e não da carga tributária, de modo que não alcançava, portanto, as revogações de isenções, apesar das súplicas de contribuintes que tinham todo seu planejamento financeiro alterado de forma repentina em razão de não mais estarem contemplados por benefícios fiscais[2].
Como a intepretação obviamente ignorava a principal ratio essendi da anterioridade, seja, o direito do contribuinte de se planejar adequada e antecipadamente, com o tempo a jurisprudência das Cortes Superiores sofreu uma guinada para, então, privilegiar o planejamento empresarial em uma visão mais econômica do direito.
A segunda geração interpretativa do princípio da anterioridade, então, passou a adotar como ponto focal da discussão as alterações legislativas que atingiam o elemento quantitativo da regra matriz do tributo, ocasionado o aumento da carga a qual estaria sujeito o contribuinte.
A virada jurisprudencial, seria justo mencionar, foi liderada pelo ministro Marco Aurélio em 2014, quando foi relator do Recurso Extraordinário 564.225 / RS. Naquela ocasião, seguindo o entendimento do relator, o ministro Luís Roberto Barroso chegou ao seguinte parecer: “Deve ser entendida como majoração do tributo toda alteração ocorrida nos critérios quantitativos do consequente da regra-matriz de incidência. Sob tal perspectiva, um aumento de alíquota ou uma redução de benefício relacionada a base econômica apontam para o mesmo resultado: agravamento do encargo”.
Na oportunidade, tanto o ministro Marco Aurélio como o ministro Luís Roberto Barroso foram assertivos sobre a necessidade de análise do princípio da anterioridade à luz dos princípios da não surpresa e do planejamento prévio, conforme se depreende dos seguintes trechos de seus votos:
Continuo convencido de que as duas espécies de anterioridade – a anterioridade alusiva ao exercício e a nonagesimal – visam evitar que o contribuinte seja surpreendido. Se, de uma hora para outra, modifica-se o valor do tributo, muito embora essa modificação decorra de cassação de benefício tributário, há surpresa. Por isso, entendo que, buscando o objetivo maior do Texto Constitucional, é observável a anterioridade. (Min. Marco Aurélio)
As garantias contra o poder de tributar evoluem e hoje o povo tem o poder de decidir e o direito de se preparar. (Min. Roberto Barroso)
A partir do precedente mencionado, pode-se concluir com certa segurança que a jurisprudência evoluiu para considerar que a revogação de benefícios fiscais que impliquem alterações nos elementos quantitativos da regra-matriz de incidência do tributo está sujeita ao princípio da anterioridade, por representar aumento indireto do tributo mediante majoração de carga tributária.
Chega o momento, agora, de a jurisprudência se modernizar mais uma vez, de modo que a interpretação sobre o alcance do princípio da anterioridade passe para a sua terceira geração.
Como ficou muito claro nos últimos anos, uma das principais demandas dos contribuintes está relacionada ao ônus tributário imposto pela legislação em vigor. Prova disso é a edição da Lei Complementar 199/23, que instituiu o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias e todo o esforço empregado na reforma tributária para unificar diversos tributos em apenas uma única exação, conforme matéria já veiculada neste JOTA.
Por óbvio, para determinados tipos de ônus tributário, não há como se atribuir um valor certo e que demonstre de forma objetiva o seu custo para o contribuinte. Porém, é lugar comum que, mais do que focar na carga tributária, é necessário que o legislador modernize o sistema tributário para reduzir o ônus a que as empresas estão sujeitas, já que isto representa um impacto severo em diversos números que são essenciais para a continuidade de suas atividades – desde o número de funcionários que devem ser contratados para tratar da contabilidade até o controle de fluxo de caixa.
Por isso, o princípio da anterioridade deve evoluir mais uma vez para não alcançar só as situações em que se observa a majoração da carga tributária, mas para também abarcar as alterações legislativas que promovam o aumento do ônus tributário dos contribuintes.
De modo a exemplificar situações em que o aumento do ônus tributário afeta profundamente a rotina financeira do contribuinte a atrair a sua sujeição ao princípio da anterioridade, podemos citar a recente publicação da MP 1202/23, a qual, em seu artigo 4º, instituiu novo regramento para as compensações de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado.
Ora, sem dúvida nenhuma a nova sistemática de compensações não representa aumento do tributo a ser recolhido pelo contribuinte, ou até mesmo majoração de sua carga tributária. Porém, nos parece muito claro que a imposição de parcelamento dos créditos detidos pela empresa afeta diretamente o ônus tributário das empresas, especialmente aquelas que já haviam realizado seu planejamento financeiro prevendo a quitação de futuras obrigações tributárias com créditos decorrentes de ações judiciais.
Por mais que o valor das obrigações tributárias não tenha aumentado no exercício após a edição do artigo 4º da MP nº 1.202/23, a impossibilidade do seu pagamento por meio de compensações afeta diretamente o fluxo de caixa das empresas.
Não é preciso ser nenhum especialista para saber que o planejamento do fluxo de caixa é vital para as empresas, já que é a partir dele que o empresário poderá programar o pagamento de obrigações trabalhistas, fiscais, civis, bancárias etc. dentro de um exercício financeiro.
Como explica o Sebrae, o objetivo dessa ferramenta é apurar o saldo disponível no momento e projetar o futuro, para que exista sempre capital de giro acessível tanto para o custeio da operação da empresa (folha de pagamento, impostos, fornecedores, entre outros) quanto para o investimento em melhorias (reforma da fachada, por exemplo)[3].
Não por outro motivo que falhas no planejamento do fluxo de caixa são uma das principais razões para falência de empresas em território nacional, conforme estudo realizado pelo Serasa Experian[4].
Sabemos bem que a questão envolvendo a sujeição da alteração de regras de compensação ao princípio da anterioridade já foi analisada há muito tempo pelo STF, que, há mais de 20 anos, ao julgar o Recurso Extraordinário 256.273, sedimentou a orientação de que a limitação da regra de compensação de prejuízo fiscal não está sujeita à anterioridade.
Porém, o entendimento em questão ressoa em interpretação já ultrapassada pelo próprio Supremo, seja, de que a compensação tributária seria benefício fiscal e, por isso, sua revogação não estaria sujeita à observância de princípios que privilegiam a não surpresa e o planejamento[5].
Como mencionado, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário 564.225/RS, o STF passou a adotar intepretação muito mais econômica do princípio da anterioridade, privilegiando a previsibilidade e o planejamento em detrimento da interpretação literal daquela garantia constitucional.
É por isso que acreditamos que o tema deve ser mais uma vez levado à consideração do STF, oportunidade em que esperamos que a interpretação do princípio da anterioridade alcance a sua terceira geração, passando a regra a ser aplicada também para as situações de aumento evidente do ônus tributário, especialmente aquelas que afetem diretamente o fluxo de caixa das empresas.
[1] RMS n. 10.937/RO, Rel.: Min. Francisco Peçanha Martins, 2ª Turma, J.: 06/02/01, DJ: 19/11/01.
[2] A orientação do STJ era categórica: “A isenção prevista no art. 6º, inciso VII, alínea ‘b’, da Lei 7.713/88, abrangia os benefícios ou complementações recebidos das entidades de previdência privada (…) A revogação tem eficácia imediata, podendo o tributo ser cobrado no mesmo exercício financeiro, em que a lei revogadora for publicada, sem afrontar o princípio da anterioridade tributária, salvo a hipótese do art. 178 do CTN (RE n. 99.908-RS, Rel. Min. Rafael Mayer, publicado na RTJ 107/430-432).” (REsp n. 932.289/RJ, Rel.: Min. José Delgado, 1ª Turma, J.: 11/09/07, DJ: 01/10/07)
[3] https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/fluxo-de-caixa-o-que-e-e-como-implantar,b29e438af1c92410VgnVCM100000b272010aRCRD
[4] https://www.serasaexperian.com.br/blog-pme/ir-a-falencia-veja-os-principais-motivos-e-como-evita-los/
[5] RE 617389 AgR, Rel.: Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, J.: 08/05/12, DJ: 22/05/12.