Ações afirmativas e LGPD

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O ESG não é algo novo, e poderíamos imaginar que o passar dos anos diminuiria a velocidade do seu crescimento, o que não é verdade. O ESG está a pleno vapor. Isso se deve ao crescente entrelaçamento econômico e financeiro dos países, o avanço dos direitos humanos e a outros temas que trazem para o cerne das discussões corporativas a ponderação entre negócios, riscos e responsabilidade social.

A diversidade faz parte dessas pautas, exigindo das empresas a promoção de ações para ampliação da pluralidade do ambiente laboral de gênero, étnica, etária e socioeconômica, em todos os níveis hierárquicos.

Como consequência disso, segundo o levantamento do Vagas.com, vagas de emprego afirmativas cresceram em 33% no ano de 2022.

Antes de se criar tais oportunidades de trabalho, porém, é crucial que as empresas tenham consciência sobre o nível de diversidade da organização para, com isso, construir uma política de diversidade que foque não apenas na captação de novos colaboradores, mas que também viabilize a ocupação de cargos de liderança por grupos minorizados.

Toda essa movimentação corporativa, no entanto, enfrenta hoje um “dificultador”: a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Imagine, por exemplo, que uma empresa desenvolva uma pesquisa interna com o objetivo de identificar o perfil dos colaboradores para determinar quais áreas e ações devem ser objeto da política. Para que isso seja possível, é fundamental a coleta de alguns dados pessoais sensíveis, tais como informações sobre raça, orientação sexual e dados de saúde. Nesse caso, qual seria a base legal mais apropriada?

Analisando o art. 11, da LGPD, poderíamos cogitar as seguintes bases legais para o caso hipotético: (i) consentimento; (ii) cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; e (iii) exercício regular de direitos, inclusive em contrato.

De início podemos descartar a hipótese de “cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador”. A implementação de políticas de diversidade decorre de uma combinação de fatores, como a pressão de investidores, consumidores, órgãos de classe e outras entidades, no entanto, inexiste hoje qualquer determinação legal que obrigue as empresas a adotarem ações afirmativas.

Da mesma forma, o “exercício regular de direitos em contratos” também não nos parece a mais adequada ao caso. Ainda que seja possível cogitar que a compreensão do perfil dos colaboradores seja uma prerrogativa (direito) do empregador, não se trata de uma atividade que deriva diretamente do contrato de trabalho, mas que se relaciona a um interesse do empregador, segundo boas práticas de mercado.

Resta-nos, portanto, o consentimento, mas seria essa hipótese realmente a mais adequada? Um dos primeiros elementos que devemos considerar é que o consentimento, para ser válido, precisa ser livre. Isso, por si só, poderia ser um fator agravante para a escolha dessa base, quando, bem sabemos, o consentimento no ambiente laboral tende a ser prejudicado em razão da disparidade de forças entre empregador e empregado.

Ainda que se supere esse argumento, devemos considerar que a negativa de um ou mais colaboradores em responder a pesquisa pode afetar negativamente o resultado de toda a ação, já que não será possível mapear 100% do quadro de colaboradores (somente daqueles que consentirem).

A essa altura do artigo, você pode estar se perguntando se a empresa não poderia adotar um formato de resposta anônimo. Para começar, uma pesquisa nesses moldes seria no máximo pseudonimizada, já que a depender da área e das demais perguntas, a reidentificação do respondente poderia ser feita com bastante facilidade.

Ainda que esse não seja o caso, em muitas organizações, pesquisas dessa natureza não servem apenas como insumos para criação de estatísticas e definição de estratégias, mas também como instrumentos para compreensão das dificuldades de colaboradores específicos e engajamento em iniciativas internas.

O caso acima é apenas um exemplo de tratamento de dados envolvendo o tema diversidade que não encontra respaldo legal adequado. Outras atividades relacionadas, como a criação de vagas de emprego afirmativas, também passam pelo mesmo dilema.

Não há dúvidas de que a LGPD, ao estabelecer hipóteses mais restritivas para o tratamento de dados pessoais sensíveis, busca conferir uma camada maior de proteção aos titulares, evitando a utilização de dados para fins discriminatórios e prejudiciais à população. Apesar da nobre intenção do legislador, a norma parece desconsiderar completamente situações em que a discriminação assume papel positivo. E, ao desconsiderar essas atividades de tratamento de dados, a lei dificulta e até mesmo desencoraja a implementação de ações sociais.

Dentre as soluções possíveis, está a criação de uma nova base legal de tratamento para ações afirmativas. Ao adotar essa abordagem, a legislação permitirá que as organizações deixem de recorrer a ginásticas interpretativas para definição de bases legais, conferindo maior segurança jurídica a todos os envolvidos.

Vale ressaltar que a sugestão acima não significa atribuir uma carta em branco para coleta dados sensíveis ao bel prazer dos empregadores. Ao contrário, busca-se respaldar as organizações em relação a um tratamento específico. Até que isso aconteça, as empresas ficam ainda mais distantes de honrar os princípios do ESG, tão caros à nossa sociedade.