A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que é competência da Justiça comum estadual processar e julgar ações indenizatórias que tenham como objetivo o reconhecimento de relação trabalhista nos casos em que se alega uma fraude em um contrato prévio de prestação de serviço. A decisão foi tomada no Conflito de Competência 202.726, de São Paulo.
Na ação que suscitou o conflito de competência, a parte pede reconhecimento de vínculo empregatício com a empresa Multiteiner, de comércio e locação de containers, e uma indenização de R$ 80 mil. Ela alega que houve fraude na sua contratação como autônoma e pede que as lesões que sofreu quando o teto de um auditório da empresa desabou sejam caracterizadas como acidente de trabalho. A mulher, que afirmava receber R$ 1.600 mensais variáveis de acordo com as horas trabalhadoras, diz ter ficado 4 horas soterrada durante o acidente que vitimou 9 pessoas.
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O Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Itapecerica da Serra, em São Paulo, afirmou que caberia à Justiça comum analisar o contrato firmado entre as partes, com base na tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 725 de que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”.
Já o Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Itapecerica da Serra argumentou que a Emenda Constitucional 45/04 estabelece a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”.
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Como os 2 magistrados entenderam que não caberia a eles julgar o caso — o que configura um conflito negativo de competência — a questão teve de ser resolvida pelo STJ.
A decisão
Para a ministra Andrighi, não é possível analisar o pedido de vínculo de emprego e de indenização por acidente de trabalho sem antes verificar a validade do contrato de prestação de serviços.
“A causa de pedir está lastreada fundamentalmente na existência de má-fé da empresa na entabulação do contrato originário, de modo que é inviável decidir o pleito principal de reconhecimento de vínculo empregatício sem se imiscuir na causa de pedir deduzida na ação (alegação de fraude)”, escreveu a ministra.
Andrighi reconheceu a competência da Justiça Comum estadual para processar e julgar a demanda. Segundo a decisão, só após reconhecimento de “eventual vício de consentimento ou social, com anulação do negócio jurídico preexistente” será possível pleitear na Justiça do Trabalho o reconhecimento do suposto vínculo de emprego.
Ricardo Marangoni Filho, um dos advogados que representa a empresa na ação, afirma que a decisão “mostra-se fundamental” para a segurança jurídica, já que respeita o contrato firmado pelas partes anteriormente. “Sob este cenário é que temos de travar eventual discussão, visando o rigor do cumprimento ao instrumento firmado”, disse.
Pedro Ricardo Mosca, que também atuou representando a companhia, disse ao JOTA que acredita que o posicionamento do STJ trará maior segurança jurídica às empresas. “Elas poderão firmar contratos de prestação de serviços autônomos, sem, contudo, assumir o risco futuro de ser declarada a nulidade da contratação pela Justiça do Trabalho, desde que sejam respeitados os requisitos necessários à validade do negócio jurídico”, disse Mosca.
Já o advogado André Devitte, que representou a parte autora da ação, afirmou que a decisão da ministra irá gerar “grave prejuízo” a sua cliente, “tendo em vista que existem muitas empresas que se utilizam de artimanhas fraudulentas para se esquivar de suas responsabilidades trabalhistas, o que ocorreu no presente caso”.
Para ele, a decisão deveria ser revista para que a Justiça do Trabalho julgue o caso. “A competência deveria ser declinada somente em casos em que ficasse comprovado através de prova pré-constituída a existência de validade do negócio jurídico, sobretudo através de autorização legal, ausência de subordinação, habitualidade”, disse Devitte.
Na visão do advogado, enviar todas as demandas sobre reconhecimento de vínculo empregatício em que houver formalização de contrato de trabalho autônomo irá provocar um “acúmulo desenfreado de demandas pela Justiça Comum” e “gerará ainda mais morosidade nas análises de outras demandas”.
Competência
Para Osmar Mendes Paixão Côrtes, professor do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IDP), a decisão da ministra traz uma novidade por ser mais específica ao estabelecer que é preciso antes apreciar na Justiça Comum a validade ou não do contrato civil antes de analisar a questão trabalhista.
“O Supremo não enfrentou tão a fundo quanto o STJ agora essa questão da competência, mas ele já sinalizou nesse mesmo sentido”, avalia Paixão Còrtes. “Essa decisão está inserida em um contexto hoje de uma colocação de uma certa barreira no limite do exame do vínculo de emprego, que ele só poderá ser apreciado em não sendo o caso de validade completa, de higidez, daquele contrato de natureza civil”, avalia o professor.
Em setembro do ano passado, o JOTA realizou um painel para discutir a segurança jurídica e a competência para analisar conflitos empresariais. O evento, realizado em Brasília, contou com a participação do ministro João Otávio de Noronha, do STJ; da ministra Maria Cristina Peduzzi, do Tribunal Superior do Trabalho (TST); de Marcelo Mazzola, professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro; e de Luciano Timm e Sidnei Amendoeira, professores da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.