A indústria retornou para o centro da estratégia de desenvolvimento do Brasil, após um período de ausência do debate de políticas industriais no cenário público federal. Agora, o objetivo é reverter o processo de desindustrialização ocorrido no país nos últimos 40 anos, quando a indústria brasileira perdeu complexidade econômica, inovou pouco e, assim, cresceu menos e ficou mais desigual.
A estratégia brasileira lançada recentemente, chamada de Nova Indústria Brasil, visa ser o início de uma política de Estado moderna e viável, estruturada em um conjunto de programas e medidas que buscam solucionar os desafios atuais.
Ao conceder incentivos à sustentabilidade, à inovação, às exportações e aos ganhos de produtividade, o programa brasileiro está em linha com os instrumentos usados hoje por lideranças globais, como China, Estados Unidos e União Europeia.
“Há uma grande janela de oportunidades para o Brasil, e essa nova política nos auxilia a pensar em inserir o país nas cadeias globais de valor de média e alta complexidade”, afirma Rafael Lucchesi, diretor de Desenvolvimento Industrial e Economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
O plano é dividido em seis missões, que vão orientar os investimentos do governo até 2026, nas áreas-chaves:
cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética;
complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde;
infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades;
transformação digital da indústria para ampliar a produtividade;
bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras;
tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais.
“Essa é uma política moderna, que dialoga muito com o movimento que os principais países estão fazendo na construção de um novo desenvolvimento industrial”, analisa Lucchesi.
Por meio do programa, serão utilizadas ferramentas de políticas públicas – a exemplo de subsídios e empréstimos –, para estimular setores como agroindústria, infraestrutura, bioeconomia, saúde e tecnologia.
Planejamento com enfoque em missões
De acordo com o plano de ação disponibilizado pelo governo federal, a segmentação da política em missões tem o intuito de oferecer soluções que promovam o desenvolvimento industrial, mas também tragam transformações socioeconômicas e possam melhorar o cotidiano dos brasileiros.
“A abordagem de missões do Nova Indústria Brasil tem uma perspectiva transversal, ou seja, não aponta exatamente em nenhum setor de forma a trabalhar ecossistemas produtivos integrados, motivados por questões sociais relevantes”, explica André Roncaglia, economista e professor de Economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Segundo o economista, a ideia é que haja uma articulação entre o poder público e o setor privado para explorar o potencial produtivo do Brasil, assim como já acontece em outros países.
A primeira missão é voltada à agroindústria, com um olhar para a ampliação da segurança alimentar, nutricional e energética. Já a segunda está relacionada ao complexo industrial da saúde, para atuar de maneira a aumentar o acesso a esse direito e posicionar o Brasil enquanto desenvolvedor de tecnologias essenciais.
“Para desenvolver uma vacina, por exemplo, é necessária a articulação de vários setores. Desde o processo de produção do conhecimento, por meio de institutos de pesquisa e universidades, até a elaboração do produto e distribuição, seja via Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelo mercado privado”, exemplifica Roncaglia.
“Estamos falando de um processo de fortalecimento da rede de produção interna, com serviços que serão prestados com uso de tecnologia que pode ser desenvolvida dentro do Brasil”, finaliza.
A infraestrutura de cidades, como saneamento, moradia e mobilidade são os temas da terceira missão, com propósito de integrar e melhorar o bem-estar para a população dos centros urbanos.
Enquanto isso, a quarta missão deve atuar no emprego de maior tecnologia na indústria, a fim de aumentar a produtividade do parque industrial brasileiro. “Existe um desafio enorme para digitalizar pequenas e médias empresas, por isso esse é um importante tema a ser trabalhado nessa missão”, pontua Roncaglia.
A bioeconomia, descarbonização e transição energética são tópicos abordados na missão cinco – essa seara é essencial para o Brasil atingir uma economia verde e cumprir seus compromissos climáticos, além de representar grande oportunidade para o país aproveitar suas vantagens e se tornar líder da tendência mundial de descarbonização.
Por fim, o programa Nova Indústria Brasil reserva a sexta missão para o emprego de tecnologias para manutenção da soberania e defesa nacional.
Nova Indústria Brasil não tem impacto adicional no orçamento
A política industrial, por carregar os investimentos-chave para o futuro da economia, requer continuidade, como uma política de Estado, de longo prazo, resistente às mudanças de governo.
Nesse sentido, dentro da Nova Indústria Brasil, o programa Plano Mais Produção prevê R$ 300 bilhões, a serem empregados ao longo de quatro anos (ou seja, R$ 75 bilhões ao ano). Assim, o objetivo é financiar a neoindustrialização e conceder à indústria tratamento equivalente ao setor agropecuário, que conta com o Plano Safra.
O Plano não deve ter impacto fiscal adicional. “Para efeito de comparação, o Plano Safra promete, em apenas um ano, R$ 364,2 bilhões, recurso que não tem comprometido o equilíbrio fiscal do país e que tem produzido resultados positivos para o desenvolvimento do agronegócio nacional”, avalia Luchesi, da CNI.
Além disso, a maior parte do valor anunciado no Plano Mais Produção é crédito, que deverá ser devolvido ao banco que efetivar o empréstimo. Esses recursos já estavam previstos no orçamento do governo federal, seja nos fundos que alimentarão o programa, como o FNDCT, o FUST e o FAT, seja via captação internacional.
De R$ 300 bilhões anunciados, o BNDES tem participação em R$ 260 bilhões
Para tirar do papel a nova política industrial, o governo federal estabeleceu três eixos: apoio financeiro, criação de ambiente de negócios favorável, auxílio instrumental nas contratações públicas. Há previsão do apoio via linhas de crédito, equity e recursos não reembolsáveis por meio do Plano Mais Produção.
Os principais atores estatais envolvidos nesse programa são o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Além disso, a intenção é que o BNDES não receba aportes do Tesouro Nacional para fomentar os investimentos.
O vice-presidente Geraldo Alckmin, também à frente do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MIDC), tem ressaltado esse ponto – após preocupação por parte do mercado sobre o papel que o banco de desenvolvimento deve desempenhar no plano.
“No passado, o BNDES recebia muitos recursos do Tesouro Nacional, com aportes grandes, e esse valor era direcionado para setores específicos. Agora, é diferente, uma vez que o subsídio está previsto em lei. O BNDES praticamente não terá subsídio direto do Tesouro e ele estará usando uma variedade de taxas, desde taxas de longo prazo, que seguem próximas da Selic, até a Taxa Referencial (TR) para esses recursos”, explica Roncaglia.
Em relação aos R$ 300 bilhões anunciados, o BNDES tem participação em R$ 260 bilhões, pontua José Luis Gordon, diretor de Desenvolvimento Produtivo, Inovação e Comércio Exterior do BNDES.
“A grande maioria do crédito será em recursos reembolsáveis, em que nós temos as taxas mais incentivadas, ou seja, com custo abaixo do mercado. Esse crédito é para dois temas fundamentais: inovação tecnológica e digitalização, além da agenda de descarbonização da economia. Nessas duas frentes, o BNDES tem mais instrumentos para induzir o desenvolvimento por meio de condições mais favoráveis por meio de recursos reembolsáveis”, afirma.
Além disso, o BNDES deve ter participação acionária em fundos de investimentos focados em empresas que estão alinhadas às missões do Nova Indústria. “O primeiro exemplo desses fundos está sendo construído com a Vale e é voltado a minerais críticos para a transição energética”, comenta Gordon. Ele afirma que esse fundo será utilizado já que há uma lacuna no mercado brasileiro para pesquisa e indução desses minerais.
A perspectiva é que o valor previsto pelo programa seja um ponto de partida, sob a expectativa de mais investimentos privados. “O Brasil é o país com maior aptidão para transição energética e ecológica, por isso apresenta vantagens para se destacar na energia verde e na descarbonização. Dessa forma, uma das consequências será atrair mais investimentos estrangeiros ao país”, opina Lucchesi, da CNI.
Segundo estimativa da instituição, a equalização de juros estimado para o Plano Mais Produção é de cerca de R$ 1,93 bilhão ao ano, sendo que grande parte dos recursos serão emprestados à taxa de captação do governo.
“Os recursos que serão empregados já estavam previstos pelo governo federal, seja pelos fundos que alimentarão o programa ou pela captação internacional”, acrescenta o diretor da CNI.
Em relação à melhoria do ambiente de negócios, há um planejamento para a redução do Custo Brasil – o termo é usado para nomear uma série de problemas que elevam os custos de produção, os quais dificultam a exportação de produtos brasileiros ao mercado internacional, além de prejudicar a competição dos produtos nacionais com os importados.
Nesse sentido, a expectativa do setor industrial é que mais de 40 projetos sejam executados ou acompanhados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) a fim de alcançar essa meta.
Sobre esse planejamento, Lucchesi analisa: “Essas medidas são necessárias, pois partimos de um ambiente de negócios que custa às empresas R$ 1,7 trilhão ao ano em Custo Brasil. Ainda, temos um spread bancário de 27,4%, diante de uma média mundial de 7,3%, o que encarece muito a tomada de crédito bancário”.
As contratações e obras públicas, além de compras da administração pública direta, também são instrumentos considerados no plano de ação para fomentar o desenvolvimento industrial. Para isso, poderão ser usadas ferramentas como a Lei 14.133/2021, conhecida como Nova Lei de Licitações, assim como grupos de trabalho e comissões para atuar nesse eixo.
A demanda por uma nova política industrial
A necessidade de políticas ambientais e contra a crise climática, além da adequação da indústria nacional às novas tecnologias são denominadores comuns em todas as missões. Esse é um reflexo de uma demanda por mudanças nas políticas de produção em todo o mundo.
Nesse aspecto, o trabalho em inovação e impacto social da economista italiana Mariana Mazzucato, professora da University College London (UCL), serviu como referência para o governo formular o Nova Indústria Brasil. Além disso, o plano brasileiro também se inspira em tendências internacionais, como o programa Horizon Europe.
O plano europeu conta com um orçamento de 95,5 bilhões de euros para pesquisa e inovação, com intuito de traçar soluções para as mudanças climáticas e fomentar o crescimento econômico da União Europeia. Junto aos Estados Unidos, Japão e Reino Unido, a expectativa é de somarem mais de US$ 6,8 trilhões de incentivos para as novas políticas industriais.
Desde 2022, também existe nos Estados Unidos o Inflation Reduction Act (IRA), uma política que incorpora medidas de fornecimento de crédito, com enfoque em soluções para a crise climática, como na produção doméstica de energia limpa. O esforço faz parte do que vem sendo chamado de Green New Deal, plano para fomentar a economia verde com impulso do setor público.
“Temos observado por diversos trabalhos, inclusive do Fundo Monetário Internacional, que a quantidade de medidas de políticas industriais no mundo vem crescendo exponencialmente a partir de 2010, sobretudo pós-pandemia. Mas a maioria dessas medidas são feitas por países já desenvolvidos, nos Estados Unidos, China e União Europeia”, aponta Gordon, do BNDES.
A separação das áreas de investimento em blocos é uma estratégia também utilizada em outros países, de forma a colocar um recurso para criar um efeito chamado “germinativo”, como descreve Roncaglia.
“Quando você investe na produção de automóveis elétricos no país, você gera demanda para o setor que produz baterias e o que realiza a extração de lítio, por exemplo. A ideia é fazer uma interligação produtiva de todos esses setores, essa é uma importante diferença para a política industrial feita até hoje no Brasil”, diz o economista.