Regulamentação de psicoativos: caminhos para o futuro

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De acordo com levantamento feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)[1], o ansiolítico mais popular do Brasil, clonazepam (Rivotril), vende ao menos 10 milhões de caixa anualmente. É o 2º medicamento mais consumido no país. O uso de medicamentos controlados dessa natureza trata distúrbios mentais, sobretudo ansiedade, depressão e insônia.

Por outro lado, LSD (dietilamida do ácido lisérgico) MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina) Cannabis sativa (maconha), DMT (dimetiltriptamina) e psilocibina são algumas das substâncias consideradas drogas ilícitas, e por isso proibidas de serem comercializadas, além de seu uso ser socialmente e legalmente desencorajado.

Nas últimas décadas, a ciência passou a estudar as drogas com maturidade, revelando importante potencial terapêutico. O uso de entorpecentes está relacionado diretamente com o tratamento de dor e sofrimento – vide a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961[2] sendo necessárias medidas que regulem adequadamente o uso feito com essa finalidade.

A lei de drogas[3], no seu art. 2º, parágrafo único, determina ser possível cultivar os vegetais que são matéria prima de substâncias entorpecentes, com objetivo medicinal. Ao mesmo tempo, a Portaria RDC nº 03, de 26/01/2015, emitida pela Anvisa, indica o canabidiol (CBD) como substância controlada.

Simultaneamente, há a judicialização da questão para garantir o uso da planta como alternativa de tratamento médico. A força popular, protagonizada por mães de crianças em quadros clínicos severos, levou o poder público a reconhecer e tutelar essa nova possibilidade medicinal.

A partir da cannabis, não é mais o Estado quem oferece a solução medicinal, mas sim a iniciativa popular quem o faz. Essa inversão de ordem produz litígios numerosos: já há mais de 2.000 solicitações perante o Poder Judiciário para autocultivo de cannabis para fins medicinais[4] e cada decisão divergente gera insegurança jurídica.

Embora o entendimento sólido do Superior Tribunal de Justiça confirme que o paciente que cultiva cannabis para fins medicinais não pode ser penalizado criminalmente, os magistrados de instâncias inferiores ainda proferem decisões conflitantes a esse respeito.

Ao mesmo tempo, a população encontrou a solução antes do Estado; como sói ocorrer, o Direito corre atrás do avanço social, e cabe ao poder público trazer a regulamentação devida, com celeridade e eficiência. Apesar de o bem jurídico tutelado nessa discussão ser a vida, o Direito da Saúde e o Direito Penal se encontram, pois a matéria prima desses medicamentos é considerada droga pela legislação vigente.

De 2014 — ano da primeira autorização judicial para importação de Canabidiol —, até hoje, a Anvisa emitiu diversas resoluções sobre o uso e dispensa de produtos provenientes de cannabis. Em destaque, a Resolução da Diretoria Colegiada 327/19, que dispõe sobre as condições para comercialização de produtos de cannabis em território nacional, e a RDC 660/22, que indica a forma como os produtos são adquiridos pelos pacientes.

Ademais, em um movimento global, cientistas estão indicando resultados positivos mediante o uso de MDMA, LSD, e psilocibina para o tratamento de TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), depressão e dependência química.

Inclusive, no 2º semestre de 2023, a Austrália se tornou o primeiro país do mundo a autorizar a prescrição de MDMA para fins medicinais[5]. A substância gera efeitos de euforia, pois é um estimulante análogo à anfetamina.

Não se nega a necessidade de estudos, da verificação de efeitos colaterais, do uso controlado e assistido por profissional qualificado. O que se reivindica é a mudança na forma como o Estado se porta, tratando psicoativos — a exemplo da cannabis — como remédio e não como droga.

A ciência brasileira inclusive nos brindou com a descoberta do Sistema Endocanabinoide[6]. Também já se sabe sobre os efeitos dos fitocanabinoides no tratamento de doenças, a partir do restabelecimento do equilíbrio do organismo[7].

Nesse sentido, a Cannabis sativa é revolucionária por ser um fitoterápico de eficácia reconhecida pela medicina alopática, com efeitos colaterais reduzidos em relação aos fármacos comuns.

Enquanto os remédios tradicionais causam efeitos colaterais preocupantes, como ideias suicidas, automutilação e alterações de humor relevantes, os efeitos da Cannabis sativa são mais leves: tontura, tremores leves, boca seca, alteração de apetite, ou diarreia — efeitos colaterais brandos comparados a ansiolíticos e antidepressivos comuns[8].

No tocante ao receio estatal quanto a um potencial aumento de adicção química, não se nega que toda substância psicoativa deve ser utilizada de forma responsável. No caso da cannabis, há impossibilidade de overdose por força da atuação do sistema endocanabinóide no corpo humano.[9]

Da mesma forma como o Estado brasileiro criou políticas públicas para regulamentação de substâncias potencialmente viciantes e mais danosas, como álcool e tabaco, o mesmo precisa ser realizado para a Cannabis sativa e outros psicoativos.

Aqui se clama por uma solução definitiva e prática que encerre a dolorosa via de judicialização para pacientes que buscam tratamento de saúde. Saúde não é um conceito objetivo sobre condição física, mas sim um tripé biopsicossocial disposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que abrange estado mental, social e físico.[10]

É irrazoável esperar que a regulamentação atenda a toda demanda social, até porque determinadas formas de produtos fogem da competência da Anvisa, como é o caso do cultivo em solo nacional, seja individualmente seja em larga escala, pela indústria.

Em termos industriais, há espaço para intervenção direta do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), atuando na fase de cultivo do insumo que será utilizado para produção de medicamentos à base de Cannabis sativa.

Em atuação conjunta com Ministério da Saúde, o Estado poderá acompanhar de perto desde o plantio da semente até a dispensa da planta nas prateleiras de farmácias, podendo agir em todas as etapas dessa produção, com o mesmo rigor como em qualquer produção e distribuição de produto, medicamento ou alimento. Raciocínio análogo se aplica aos demais psicoativos – desde a produção dos princípios ativos utilizados até a comercialização dos medicamentos proporcionados.

Ainda, o cânhamo, a cannabis com baixas propriedades medicinais, é rico em fibras e sementes, podendo ser usado desde o setor têxtil de vestimentas à tapeçaria e ao setor alimentício, graças ao seu alto índice de nutrientes.

Também pode substituir combustíveis derivados do petróleo e ser usado na fabricação de utensílios resistentes e biodegradáveis, além de possuir alta capacidade de absorção de gás carbônico, restauração de nutrientes de solos empobrecidos, e poder impedir desabamento de solo com suas raízes.

Faz-se mister a regulamentação bem elaborada para psicoativos, contemplando preocupações como: (i) controle próximo a todas as etapas de formulação e dispensa de produtos; (ii) necessidade de reparação histórica de populações vítimas da truculenta guerra às drogas – a exemplo da população pobre, preta e periférica –; e (iii) uma política de preços que garanta acessibilidade ao consumidor final.

O Brasil possui condições climáticas e solos adequados para o plantio da Cannabis sativa, há pressão interna e externa por avanço nessa seara e o país tem potencial para ser o maior fornecedor global de insumo canábico, gerando receitas bilionárias, milhões de empregos e arrecadação tributária altamente expressiva. O mercado consumidor aparenta não ter limites.

Circunstâncias similares se apresentam em relação a outros psicoativos, cuja administração pode aliviar dores psíquicas, auxiliar na redução de danos para adictos a substâncias mais fortes e trazer qualidade de vida para pacientes terminais que já não respondem eficazmente aos fármacos tradicionais.

Não há mais tempo para tabus ou reticências. É tempo de construir uma regulamentação de psicoativos honesta, moderna e centrada nas pessoas e em suas necessidades.

 

[1] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/01/ansioliticos-sao-drogas-controladas-mais-vendidas-no-brasil.html

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/atos/decretos/1964/d54216.html

[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

[4] https://globorural.globo.com/negocios/noticia/2023/06/quem-pode-cultivar-cannabis-no-brasil.ghtml

[5] https://www.tga.gov.au/news/news/update-mdma-and-psilocybin-access-and-safeguards-1-july-2023#:~:text=Since%201%20July%202023%2C%20psychiatrists,traumatic%20stress%20disorder%20(PTSD).

[6] https://actafarmaceuticaportuguesa.com/index.php/afp/article/view/5

[7] https://www.scielo.br/j/abem/a/jyHNCZvJrpCDQDz3VFyQKBM/

[8] https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/assuntos-especiais/suplementos-alimentares-e-vitaminas/canabidiol-cbd#:~:text=Em%20estudos%2C%20at%C3%A9%201.500%20mg,de%20humor%2C%20tontura%20e%20sonol%C3%AAncia.

[9] https://abraceesperanca.org.br/a-cannabis-nao-causa-overdose/

[10] https://bvsms.saude.gov.br/05-8-dia-nacional-da-saude/#:~:text=Em%201.947%20a%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial,apenas%20a%20aus%C3%AAncia%20de%20doen%C3%A7a%E2%80%9D.