A digitalização dos meios de pagamento é cada vez maior. As relações de compra e venda, que antes eram viabilizadas pelo uso do papel-moeda, passaram a ocorrer, em grande parte, por meio de cartões de crédito e débito, Pix, links de pagamento, entre outros.
A praticidade e a agilidade que decorrem dessa digitalização vêm acompanhadas de um grande problema: as fraudes digitais. Nesse contexto, os fraudadores se aproveitam cada vez mais das características típicas do mundo digital para praticar fraudes dos mais diversos tipos (aliás, praticamente todo mundo conhece alguém que já foi vítima do “golpe do Pix”, do “golpe do link de pagamento” ou de alguma outra engenhosidade criada por estelionatários digitais). Infelizmente, essas fraudes devem continuar aumentando, como apurado pelo Instituto Propague a partir de alguns estudos[1].
Considerando a importância do tema, no final do ano passado, o Comitê de Basileia para Supervisão Bancária (Basel Committee on Banking Supervision – BCBS)[2] – integrante do Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements – BIS) – divulgou um artigo para discussão (discussion paper) sobre fraudes digitais e atividades “bancária” (banking em sentido amplo)[3]. O objetivo desse paper – cuja consulta permaneceu aberta até 16 de fevereiro – é apresentar uma avaliação acerca das implicações das fraudes digitais para o sistema bancário global, coletando comentários e feedbacks sobre o assunto.
A divulgação desse discussion paper e a abertura da consulta evidenciam a importância do tema para uma entidade altamente relevante como o BIS, que entende que “os criminosos estão explorando a digitalização para cometer fraudes online em uma escala e abrangência maiores do que antes (…) já que a digitalização permite que os fraudadores sejam mais ágeis”[4]. De acordo com o Comitê, as principais preocupações referentes às fraudes digitais são as perdas financeiras dos bancos decorrentes desses ilícitos e os riscos reputacionais para os bancos e seus supervisores, impactando a credibilidade e a estabilidade do sistema financeiro.
É importante esclarecer que, além do sistema financeiro em sentido estrito, as fraudes digitais também impactam sobremaneira o sistema de pagamentos (disciplinado pela Lei 12.865/13[5]), que está exposto aos mesmos riscos, inclusive aos reputacionais. No âmbito dos pagamentos, há diversos exemplos de fraudes relacionadas à antecipação indevida de recebíveis, à criação de contas de pagamento em nome de “laranjas”, à ausência de repasses obrigatórios, entre outras.
Nesse cenário de preocupação com o tema, a adoção de medidas efetivas de combate e prevenção a fraudes digitais se mostra extremamente necessária para a preservação do sistema de pagamentos, inclusive com a participação dos órgãos reguladores em razão dos riscos sistêmicos decorrentes dessas fraudes. No Brasil, um excelente exemplo dessa mobilização é a edição da Resolução Conjunta n° 6 de 23 de maio de 2023[6].
Essa resolução, que ainda está em fase de implementação, bem identificou que “uma das causas do aumento das fraudes no SFN [Sistema Financeiro Nacional] está relacionada à assimetria de informação entre as instituições supervisionadas”, concluindo que o “compartilhamento das informações referentes aos indícios de ocorrências e de tentativas de fraudes entre as diversas instituições teria o potencial de subsidiar a prevenção de novas fraudes relacionadas com a ocorrência compartilhada, bem como interromper as ações que estejam em andamento”[7].
A Resolução, ao buscar a redução da assimetria informacional (uma das principais dificuldades no combate a fraudes), vai ao encontro de um antigo pleito de considerável parte dos players do mercado de meios de pagamento. Esses agentes há muito buscavam uma forma de atuar conjuntamente no combate às fraudes digitais, mas receavam que, sem um arcabouço normativo disciplinando a possibilidade de intercâmbio de informações, eles acabassem infringindo normas concorrenciais, de sigilo bancário e de proteção de dados pessoais.
O compartilhamento de dados e informações sobre as fraudes digitais é essencial para a prevenção desse tipo de ilícito, pois dificulta que fraudadores repliquem golpes em instituições distintas ou que possam nelas se cadastrar livremente. Evidentemente, essa iniciativa deve observar as regras já existentes, como, por exemplo, a de proteção de dados pessoais. Do mesmo modo, também deve haver um enorme cuidado para que essa iniciativa não funcione como uma restrição de acesso de pessoas ao sistema de pagamentos, inclusive com viés negativo ou preconceituoso (bias).
Ademais, o compartilhamento de dados e informações também trará benefícios para os mecanismos de inteligência artificial que já são utilizados nos procedimentos internos de combate a fraudes, permitindo a criação de novas ferramentas de segurança, inclusive. Da mesma forma, esse intercâmbio de informações e dados também servirá como um instrumento de fomento à concorrência, uma vez que a redução de assimetrias informacionais relacionadas a fraudes tende a beneficiar todos os players, em especial para entrantes novos ou recentes (que costumam ser alvos mais fáceis para fraudadores).
Em conclusão, a redução das assimetrias de informações é essencial para o combate às fraudes digitais no setor de meios de pagamento. Os fraudadores se comunicam muito bem entre si, divulgando vulnerabilidades e oportunidades em seus canais privados de comunicação. O mesmo precisa ocorrer do outro lado.
[1] Disponível em: https://institutopropague.org/tecnologia-e-dados/fraudes-seguem-em-alta-e-afetam-principalmente-pagamentos-e-comercio-eletronico/. Acesso em: 9 fev. 2024.
[2] Como explica o Banco Central do Brasil: “o Comitê de Basileia para Supervisão Bancária (Basel Committee on Banking Supervision – BCBS) é o fórum internacional para discussão e formulação de recomendações para a regulação prudencial e cooperação para supervisão bancária, composto por 45 autoridades monetárias e supervisoras de 28 jurisdições. O Comitê de Basileia – criado em 1974 no âmbito do Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements – BIS) tem por objetivo reforçar a regulação, a supervisão e as melhores práticas bancárias para a promoção da estabilidade financeira“.
Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/recomendacoesbasileia. Acesso em: 9 fev. 2024.
[3] Disponível em: https://www.bis.org/bcbs/publ/d558.htm. Acesso em: 9 fev. 20224.
[4] Ibid.
[5] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/spb. Acesso em 14 de fev. 2024.
[6] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Conjunta&numero=6. Acesso em 13 de fev. 2024.
[7] Disponível em: https://normativos.bcb.gov.br/Votos/CMN/202323/Voto_do_CMN_23_2023.pdf. Acesso em 13 de fev. 2024.