É inegável que, no Brasil, a contribuição do Prof. Dr. Dr. h.c. mult. Peter Häberle tem sido inestimável para o desenvolvimento do Direito Constitucional. Desde a primeira tradução, para o português, da obra “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição — contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição”[1], em 1997, a doutrina de Häberle tem sido incorporada com evidente vivacidade, seja no âmbito acadêmico, por meio da vertiginosa produção bibliográfica ou da prática docente e discente nas faculdades de direito, seja na praxe institucional, na forma de produção legislativa e jurisprudencial.
Reconhecendo o extremo valor de sua construção doutrinária, nada mais justo do que dedicar esta edição do Observatório Constitucional ao professor Häberle, que completa 90 anos de vida no próximo dia 13 de maio.
Nessa perspectiva, este texto apresenta uma breve análise das contribuições do autor para o direito brasileiro. Em especial, será elucidado como o pensamento das possibilidades tem se revelado fundamental para a interpretação construtiva da Constituição Federal de 1988.
De início, cabe reconhecer que são muitos os doutrinadores brasileiros de renome que defendem a necessidade de consolidação da ideia de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, formulada por Peter Häberle. Segundo essa concepção, o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser alargado para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.
No âmbito legislativo, a Lei 9.868/1999, ao institucionalizar a figura do amicus curiae na jurisdição constitucional brasileira, representa eloquente exemplo da forte influência da doutrina de Häberle que propugna por uma interpretação aberta e pluralista da Constituição. A propósito, cabe lembrar que a participação dos amici curiae é hoje admitida não apenas no controle abstrato de constitucionalidade, mas também no âmbito do controle incidental, perante os Tribunais de Justiça[2].
Já no âmbito jurisprudencial, decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em tempos recentes demonstram a inestimável contribuição de Peter Häberle para o desenvolvimento da Jurisdição Constitucional brasileira.
Em pormenor, o “pensamento de possibilidades” (Möglichkeitsdenken) constitui modo alternativo de interpretar o Direito Constitucional, a lógica jurídica e a teoria da argumentação. Cuida-se de modelo fundado na dúvida, que não pensa de forma absoluta, mas busca encontrar diversas alternativas à questão jurídica que se pretende solucionar.
Tal ideia é, para Peter Häberle, expressão, consequência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta[3]. Trata-se de pensar a partir de e em novas perspectivas, questionando-se: “que outra solução seria viável para uma determinada situação?”.
Nesse aspecto, o professor alemão ressalta que o pensamento de possibilidades não pode ser confundido com o pensamento alternativo, para que não seja associado a conceitos mutualmente excludentes (“ou um ou outro”)[4]. As ideias defendidas por Häberle pressupõem análise aberta a diversos espectros de uma mesma questão. Não há apenas uma ou outra alternativa, mas, ainda, uma terceira, uma quarta e assim sucessivamente.
Ao ter um caráter amplamente aberto, o pensamento de possibilidades tem dupla relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento de possibilidades indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à realidade, sobre aquilo que ainda não é real. Por outro lado, o pensamento de possibilidades depende da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo que pode ser real no futuro (Möglich ist nur was in Zukunft wirklich sein kann). É a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossível do possível[5].
Todavia, o pensamento de possibilidades não necessita ser orientado apenas para o futuro: nada impede que sejam mantidas vivas as alternativas que já foram, por algum motivo, desconsideradas no passado. Trata-se do que Häberle denomina pensamento da reversibilidade (de todas as possibilidades e alternativas que surjam no contexto constitucional) — Gedanke der Reversibilität, Alternativen im Rahmen der Verfassung[6].
Nessa linha, cumpre mencionar também a importância do pensamento de possibilidades para a construção da ordem democrática. A constante abertura a novas possibilidades configura fator essencial aos ordenamentos jurídicos vigentes e, nas palavras do próprio Häberle, “representa o conteúdo central dos princípios jurídico-constitucionais mais relevantes”[7].
Para enfatizar esse aspecto, Häberle vale-se dos escritos de Konrad Hesse, para quem democracia seria “pluralismo de iniciativas e de alternativas”, e ainda da doutrina americana, que confere a tal forma de governo ideais de “pluralismo e competitividade”. Outro exemplo de pluralidade de alternativas associada à democracia são as eleições, importante forma de participação democrática[8].
O pensamento de possibilidades e a pluralidade de alternativas, “[d]e modo algum representam fins em si mesmos, senão apenas meios para conservar e continuamente recriar condições de liberdade para todos os cidadãos levando-se em consideração a consecução de um justo e razoável equilíbrio de interesses, assim como para a salvaguarda da Constituição com o passar do tempo e para poder desenvolver os bens públicos de todo ser humano em seu próprio bem e em benefício da comunidade”[9].
Desse modo, uma Constituição democrática que seja pluralista representa verdadeiro “compromisso de possibilidades”, uma proposta de soluções e de coexistências possíveis, que não pretende impor a força política de cima para baixo[10].
Nesse contexto, os direitos fundamentais acabam por representar importante meio de alternativas e de opções, fazendo que, com eles, seja possível um pluralismo democrático. Liberdade é, assim, sinônimo de democracia[11]. São exemplos de direitos que dão margem à busca por alternativas: liberdade de eleição, liberdade profissional, de igualdade de oportunidades ao acesso à formação escolar, liberdade de escolha de local de residência.
Com isso — e essa parece ser uma das importantes consequências da orientação perfilhada por Häberle —, “uma teoria constitucional das alternativas” pode converter-se em uma “teoria constitucional da tolerância”[12].
Assim é que a “alternativa enquanto pensamento possível afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do método, tal como verificado na controvérsia sobre a tópica enquanto força produtiva de interpretação”[13].
Ademais: “para o estado de liberdade da res publica afigura-se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles que defendem determinadas alternativas”. Daí ensinar que “não existem apenas alternativas em relação à realidade, existem também alternativas em relação a essas alternativas”[14].
Válido ressaltar, finalmente, que o pensamento de possibilidades não significa uma teoria revolucionária, mas, sim, evolucionista. Isso porque, ao passar a considerar alternativas e ao abandonar o pensamento do “ou este ou aquele” (Entweder-oder-Denken), ele acaba por bloquear alguma espécie de intolerância intelectual[15].
O pensamento de possibilidades como técnica de interpretação constitucional já foi utilizado em diversos julgados do STF. Em várias situações, essa teoria revelou-se a alternativa mais razoável para solucionar a questão debatida.
Exemplo recente da aplicação desses rigores teóricos deu-se na apreciação do referendo da decisão que indeferiu a medida cautelar pleiteada na ADI 6.342. Dita ação impugnava a Medida Provisória 927/2020, que dispunha sobre as medidas trabalhistas excepcionais para enfrentamento do estado de calamidade pública que assolava o país durante a pandemia da Covid-19.
No caso concreto, a Corte deparou com quadro de agravamento da crise de saúde pública, a demandar a implementação das necessárias e imperiosas medidas de distanciamento e isolamento social recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Como consequência das providências sanitárias, eram notórios os graves efeitos econômicos, amargados especialmente nas faixas economicamente mais vulneráveis da população brasileira.
A atuação do Supremo Tribunal Federal nesse contexto demandava uma abertura hermenêutica da jurisdição constitucional à compreensão e à conformação da realidade econômica e social experimentada.
Naquela assentada, destaquei que, em determinadas situações, é possível verificar maior ou menor incompletude das normas constitucionais, sendo papel da Corte Constitucional identificar possíveis lacunas e colmatá-las dentro de um plano de razoabilidade. Assentei, assim, que o professor Häberle, à luz da teoria do pensamento de possibilidades, é enfático quanto à importância de que o intérprete desenvolva as orientações básicas fixadas pelo texto constitucional, por meio de noção possibilista que permita a conformação e o desenvolvimento da cultura jurídica constitucional.
Nessa linha de raciocínio, anotei que a norma impugnada enquadrava-se dentro dessa ordem de pensamento, já que previa novo regramento para a “conciliação do binômio manutenção de empregos e atividade empresarial durante o período de pandemia”, a saber: regras de teletrabalho; antecipação de férias individuais; concessão de férias coletivas; aproveitamento e a antecipação de feriados; banco de horas; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; e o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Todas elas enquadravam-se naquele contexto temporário e premente de crise epidemiológica, o que demonstrava a necessidade de reconhecer sua constitucionalidade.
Esse exemplo demonstra como o pensamento do possível constitui relevante instrumento para a resolução de casos em que valores constitucionais devem ser sopesados em situações extremas. Nessas hipóteses, a jurisprudência pátria tem se mostrado cada vez mais receptiva às teses de Häberle, reconhecendo sua relevância para o nosso Direito.
Peter Häberle destaca-se, para além do inestimável cabedal jurídico, pela profundidade de seus conhecimentos filosóficos, teológicos e artísticos. Sua obra tem chamado a atenção pela originalidade metodológica, atualização e profundidade conceitual, que permite novas abordagens para as ciências humanas, em geral, e jurídica, em particular.
Na oportunidade em que celebramos seu natalício, podemos relembrar como seu pensamento representa arcabouço teórico fundamental para a compreensão da jurisdição constitucional brasileira. Por isso, nada mais oportuno do que esta merecida homenagem a um dos maiores constitucionalistas de nosso tempo.
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Texto adaptado do artigo “A influência de Peter Häberle no Constitucionalismo Brasileiro”, publicado inicialmente na Revista de Estudos Institucionais (REI), 2(1), p. 30-56, 2016
[1] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, RS: Sergio Antonio Fabris, 1997.
[2] Cf. art. 950, § 3º, do CPC (Lei nº 13.105/2015):
“Art. 950. Remetida cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do tribunal designará a sessão de julgamento.
[…]
3º Considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, o relator poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”
[3] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 9.
[4] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 3.
[5] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 10.
[6] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 5.
[7] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 5.
[8] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 5.
[9] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 8.
[10] Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, Derechos, Justicia. 10ª ed. Trad. Marina Gascón. Madri: Trotta, 2011, p. 14.
[11] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 6.
[12] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 6.
[13] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 7.
[14] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 6.
[15] HÄBERLE, Peter. Die Verfassung des Pluralismus: Studien zur Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Königstein: Athenäum, 1980, p. 8.