É natural ver responsáveis políticos reagirem a indicadores internacionais com a narrativa tática que for mais conveniente. Ainda recentemente, aqui em Portugal, o governo desvalorizou como “desatualizado” um relatório do Conselho da Europa alertando para falhas sérias no controle da corrupção – omitindo que foi o próprio governo português que atrasou por nove meses a publicação desse relatório.
Gerir a agenda midiática e escolher as notícias mais favoráveis são um vício antigo dos políticos. Por isso não surpreendeu ver a deputada federal e presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, em publicação no X, valorizar o indicador Previsão de Risco de Corrupção e desvalorizar o Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, publicado no final de janeiro. Olhando para os dois indicadores, o Brasil é ao mesmo tempo um dos países mais corruptos do mundo, ou um dos que melhor controla a corrupção. O economista Fernando Teixeira explorou este paradoxo, aqui mesmo no JOTA, mas interessa aprofundar a análise.
“Em estatística, a discrepância entre dois indicadores é mau sinal. Ou um deles está errado, ou os dois estão”, escreve Fernando Teixeira. Sim e não. Na verdade, índices diferentes medem coisas diferentes e, claro, dão resultados diferentes. Se dois índices diferentes dão conclusões completamente opostas, o problema pode estar num índice, no outro, ou em ambos. Ou pode estar na interpretação que se faz dos índices. Importa por isso percebê-los.
Goste-se ou não, o Índice de Perceção da Corrupção da Transparência Internacional é o indicador global mais citado e respeitado quanto à situação da corrupção no mundo. Não só porque foi a primeira ferramenta global a ser desenvolvida, mas porque agrega num único índice uma variedade de observações externas sobre a realidade de cada país, recorrendo a indicadores de organismos como o Banco Mundial, o Fórum Econômico Mundial, a Freedom House e outros. Não é, portanto, um índice “contaminável” pelas opiniões públicas de cada país, como pareceu sugerir Fernando Teixeira, ou sequer pelos desejos dos próprios ativistas da Transparência Internacional. São observações externas, precisamente para que não sejam “contaminadas” pela evolução episódica das percepções da opinião pública, mais voláteis de acordo com o clima midiático.
Ao contrário do que disse Gleisi Hoffmann e vários outros críticos do índice, a metodologia e as fontes utilizadas neste índice da Transparência Internacional não são “secretas” ou “desconhecidas” – podem ser facilmente consultadas e baixadas no site da Transparência Internacional. É sabido que as teorias da conspiração estão na moda em todo o mundo, mas às vezes um índice global com resultados embaraçosos é só mesmo um índice global com resultados embaraçosos, espelhando uma situação embaraçosa. Pode criticar-se um potencial viés ideológico das fontes utilizadas, mas a Transparência Internacional compensa esse risco precisamente recorrendo a uma multiplicidade de fontes para cada país.
É verdade que muitas observações vêm de organismos com um foco na economia e no chamado “clima de negócios”, o que pode criar distorções – nomeadamente, a de sobreavaliar formas de corrupção com mais impacto nas empresas, como a pequena corrupção na administração pública, e desvalorizar problemas como a corrupção política. O problema é que foram estas organizações econômicas que desenvolveram os primeiros, e mais sólidos, indicadores de observação da corrupção. A vantagem do Índice de Percepção da Corrupção é que, pela sua metodologia, pode facilmente integrar outros indicadores que venham a ser criados (desde que tenham robustez científica) e que ajudem a melhorar a qualidade e abrangência das observações sobre cada país.
Também é verdade que há uma inesgotável literatura científica a defender e a criticar o Índice de Percepção da Corrupção. Em função dessa discussão, nos últimos anos têm sido criados outros indicadores úteis. A razão é simples: não há formas perfeitas de medir uma realidade esquiva como a corrupção. Tudo o que se discuta e desenvolva, desde que com qualidade científica, é por isso bem-vindo.
O Previsor de Riscos de Corrupção não é propriamente um índice global, mas uma medição de tendências no combate à corrupção, a partir da análise de desempenhos continuados no tempo em seis indicadores relevantes de integridade pública, que incluem a transparência administrativa e orçamental, a disponibilidade de serviços online, as taxas de utilizadores de internet de banda larga entre a população e dimensões institucionais relevantes, como a liberdade de imprensa e a independência judicial.
O Brasil tem ótimos indicadores em áreas como os serviços digitais e a transparência administrativa e orçamental. Mas, claro, orçamentos secretos não são medidos nos indicadores de “transparência orçamental” – deste lado, Portugal também tem bons indicadores de transparência em áreas como a contratação pública e não é por isso que não temos escândalos reiterados de corrupção nesta área. Ter boas ferramentas que podem, potencialmente, ser usadas para controle da corrupção não significa que sejam efetivamente usadas. Aliás, o problema das ferramentas de controle é que tendem a dirigir-se à corrupção administrativa, de funcionários, e descuidar da corrupção política. Ora, quando a corrupção vem do topo, as ferramentas de controle administrativo são inúteis, se não houver capacidade de escrutínio externo – judicial, social e da imprensa.
Justamente, o retrato do Brasil mostrado no Previsor de Riscos de Corrupção é claro: o país está numa tendência de estagnação nos últimos dez anos. E os indicadores de independência judicial e liberdade de imprensa são precisamente os que mostram tendência de queda entre 2013 e 2023. O indicador mais baixo é o de acesso às ferramentas digitais, medido pelo número de assinantes de internet de banda larga e de presenças na rede social Facebook (um indicador bizarro, para mim, de acesso e literacia digital). Ora, sem acesso efetivo ao universo online, mesmo os bons indicadores de serviços públicos digitais e transparência orçamental em ferramentas online perdem boa parte da sua eficácia.
A má notícia: o Brasil está longe de ser um país das maravilhas no controle da corrupção, como mostra o Índice de Percepção da Corrupção. A boa notícia: o Brasil tem ferramentas com bom potencial para o controle da corrupção, como mostra o Previsor de Riscos de Corrupção. Precisa querer usá-las. Não está tudo por fazer. O que é preciso – no Brasil ou em qualquer país do mundo – é aliar vontade social, liderança política e reforma institucional e administrativa. O problema é sempre de vontade. Que ela não falte.