Caso você, leitora ou leitor, tenha utilizado transporte público para chegar a sua seção eleitoral em outubro de 2022, há boas chances de ter feito isso gratuitamente. Porém, a partir de 2024, as chances serão certeiras.
Nas últimas eleições presidenciais, houve uma intensa campanha pela liberação das catracas. Ela foi principalmente levantada pelo movimento Passe Livre pela Democracia, organização que reuniu mais de 70 entidades para pressionar gestores municipais pela tarifa zero aos eleitores. Dentre as frentes de atuação da campanha, uma delas passou diretamente pelo sistema de justiça, sendo representada pela ADPF 1013. Seus pedidos eram que se determinasse a equiparação de frequência de transporte entre dias úteis e dias eleitorais e que este fosse prestado em título gratuito ao usuário.
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Em cautelar, o STF determinou a equiparação de frequência, mas afastou a obrigatoriedade de gratuidade geral. Assim, cidades que já ofereciam o serviço gratuitamente deveriam mantê-lo, mas novas gratuidades estariam apenas recomendadas. A opção se deu em virtude da proximidade do pleito, evitando uma imposição repentina de gastos aos municípios e estados.
A partir desse cenário, por que teríamos quase todas as capitais adotando o passe livre em outubro de 2022? Ainda que pressões políticas e negociações com gestores tenham sido peça-chave da discussão, uma frente importante foi encabeçada via Justiça comum. Em diversos municípios do país, as Defensorias Públicas dos Estados ajuizaram Ações Civis Públicas pedindo a gratuidade do transporte com base na recomendação feita na ADPF 1013. Em São Paulo, por exemplo, 16 cidades contaram com transporte público gratuito após liminares concedidas em processos ajuizados pela DPE-SP.
A política pública de gratuidade, porém, não foi regra, variando a depender de onde o eleitor estivesse. Muitos municípios contaram com judicialização local, mas tiveram a política negada. A título de exemplo, Rio Branco, no Acre, foi a única capital sem transporte público gratuito na ida e na volta, mesmo após ação civil pública proposta pela DPE-AC. A própria DPE-SP, que garantiu a política em diversos municípios, perdeu em três comarcas: Mogi das Cruzes, Piracicaba e São José dos Campos. Como a decisão monocrática da ADPF 1013 apenas recomendou a gratuidade, alguns juízes consideraram que não era competência do Judiciário determiná-la ao Poder Público local.
Ainda, a falta de uniformidade exemplificada acima considera apenas as cidades em que houve alguma judicialização após inércia do Executivo. Em muitas localidades, podemos supor que o passe livre sequer foi considerado. Também há locais em que existiu no papel política de gratuidade, mas ela não foi adequadamente executada. Um exemplo é a cidade de Macapá, onde três empresas de ônibus foram denunciadas por não atenderem ao decreto da Prefeitura determinando frequência adequada e gratuidade da tarifa. Alguns eleitores precisaram esperar três horas pelo transporte gratuito, levando a várias desistências e consequentes abstenções.
Por último, muitos municípios do país sequer têm transporte público, que dirá gratuidade. De acordo com levantamento do IBGE, ao menos 12,4 milhões de brasileiros “vivem onde não passa nem um ônibus sequer”.
Já fora do contexto eleitoral, na última quinta-feira, dia 19 de outubro de 2023, o STF decidiu, por unanimidade, que o Poder Público tem a obrigação de fornecer transporte público regular e gratuito em dias de eleições.
Os ministros argumentaram que, se o dever de votar é igual para todos, a cobrança pelo uso do transporte poderia prejudicar os mais pobres. Portanto, o Poder Público se omitir em assegurar transporte regular e gratuito em dias de eleições seria inconstitucional. Ainda, garantir uma política uniforme de transporte em todo o país diminuiria o transporte irregular em troca de voto ou o uso da política pública como ferramenta estratégica para obter vantagem eleitoral.
Como a procedência da ADPF implica a necessidade de planejamento e previsão orçamentária, os ministros concordaram que deveria ser dada prioridade a uma decisão tomada no Legislativo, que poderia detalhar questões orçamentárias e de competência e fiscalização, por exemplo. Porém, como há violação à Constituição, foi decidido que, se não editada lei, a gratuidade e a equiparação de frequência serão obrigatórias a partir das eleições de 2024.
Na discussão, alguns pontos relevantes foram levantados. Alexandre de Moraes, que foi secretário Municipal de Transportes de São Paulo e Presidente da SPTrans de 2007 a 2010, apresentou dados que mostram como o gasto seria irrisório quando comparado com todo o serviço de transporte. Segundo ele, em média, o uso da frota de ônibus de segunda a sexta seria de 100%; aos sábados, 60%, e aos domingos, 40%. Assim, os domingos representariam 6,7% dos gastos totais do município com transporte público. Considerando a equiparação da frequência, se dois domingos nos anos eleitorais (referentes a primeiro e segundo turno) passassem de 40% de frota em uso para 100%, o aumento anual seria de 0,2% da estrutura necessária. Considerando também a gratuidade, a política representaria 0,37% do gasto anual do município com transporte. Às palavras de Moraes, isso “é absolutamente nada”.
Moraes também reforçou que já há a possibilidade – mas não a obrigação – de municípios criarem linhas especiais ou utilizarem outras frotas, como a escolar, no dia de eleição, desde que em comum acordo com a Justiça Eleitoral. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, argumentou pela necessidade de participação dos Tribunais Regionais Eleitorais nesta discussão por meio da elaboração de Planos de Mobilidade Eleitoral, uma vez que o transporte pode ser mal utilizado para viabilizar vantagens políticas. O STF preferiu não determinar novas obrigações a outras instituições, mas, a depender da regulamentação e fiscalização, o último ponto de Moraes pode ser especialmente benéfico às regiões com pouco ou nenhum transporte público.
Junto à Lei n° 6.901/1974, que dispõe sobre o fornecimento gratuito de transporte a eleitores residentes nas zonas rurais, a decisão da ADPF 1013 aumenta as chances de que todos os eleitores tenham meios para chegar às urnas. Aguarda-se, agora, reação do Poder Legislativo. Já há Projeto de Lei sobre o tema tramitando no Congresso Nacional, que dispõe sobre a gratuidade do transporte em dias de eleições, plebiscitos e referendos.
Porém, algumas questões persistem. Eleições não obrigatórias e que, consequentemente, não impõem multa ao eleitor faltoso, também demandariam transporte gratuito? Para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, sim. Logo antes das eleições para conselheiros tutelares de 2023, o Ministério enviou recomendação às prefeituras pedindo o transporte público gratuito, usando como um dos fundamentos a decisão em medida cautelar do STF. Essa possibilidade, entretanto, não foi discutida pelos ministros na nova votação, deixando em aberto para o Legislativo ou, eventualmente, para novas disputas judiciais locais.
Por último, democracia não se faz apenas em dia eleitoral. Participar de audiências públicas, se manifestar nas ruas e ocupar espaços políticos demanda locomoção. Exercer direitos sociais, como acessar um hospital público, ir a eventos culturais e buscar seu filho na creche, também. Com a constitucionalização do direito ao transporte pela EC 90/2015 e o surgimento de debates como este exposto, não seria surpreendente se o papel do transporte público dentro do exercício dos demais direitos continuasse a ser questionado.